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"Se o mundo vos odeia, sabei que, primeiro do que a vós outros, me odiou a mim." – Jo 15.18

30 de setembro de 2013

Bola de Neve: Esta igreja é mesmo do surf?

HARCORE
Alexandre Versiani
Fotos: Victor Moryana


No século 18, quando o navegador britânico James Cook desembarcou no Hawaii, o surf fazia parte da religião local. Um sistema de leis ancestrais, chamado Kapu, assegurava o direito sagrado de surfar com ensinamentos que iam desde a construção de pranchas até orações para os deuses enviarem as ondas. Dividida em classes reais e comuns, os tabus da sociedade havaiana também valiam dentro da água. Havia recifes onde só os reis tinham o direito de surfar e praias em que o esporte era liberado para todos. Um século depois da chegada de Cook, com os dolorosos processos de colonização, o surf acabou proibido no arquipélago por missionários cristãos que consideravam a atividade imprópria. Assim o esporte ficou banido da sociedade até o início do século 20, quando então foi salvo pelo “messias” Duke Kahanamoku.

Quase um século depois, a mentalidade das pessoas mudou e os próprios missionários se contextualizaram. Há 40 anos, não eram mais padres e pastores que recriminavam o esporte, mas a própria sociedade. Por muito tempo o surfista foi tachado de rebelde, vagabundo e maconheiro. Com a massificação do surf, todos esses rótulos ficaram no passado. Hoje ele conta com uma popularidade nunca antes vista, e sua imagem é usada até em comerciais de TV, novelas e revistas de celebridade. O surf entrou de vez na roda do capitalismo, não por menos, atualmente é um dos esportes mais praticados no Brasil e o mercado que o envolve injeta milhões de reais todos os anos nas indústrias da moda e do entretenimento. Todos querem um pedaço dessa imagem saudável, até mesmo a religião, que há séculos expulsou o surf pela porta dos fundos.

De todas as igrejas no Brasil, a que mais multiplicou o seu número de fiéis na última década usa uma prancha como púlpito (espécie de altar evangélico onde o pastor comanda o culto). 

Fundada em 2000, a Bola de Neve Church fugiu do estereótipo do “crente evangélico” com uma roupagem moderna que atraiu jovens de todos os tipos. Em dez anos, saltou de 150 para 60 mil fiéis. Hoje são 220 templos espalhados pelo Brasil e por países como Argentina, Peru, Chile, Uruguai, Paraguai, EUA (Los Angeles, Miami e Hawaii), Portugal, Inglaterra, Rússia, Austrália, Haiti, Bósnia e Moçambique. A avalanche não parou por aí. A Bola de Neve ainda conta com programa de esportes radicais – veiculado nas madrugadas de sábado para domingo na TV aberta (no mesmo horário do global Altas Horas); a rádio mais acessada via internet no Brasil; peças de teatro que atraem milhares de pessoas; cursos para a formação de novos pastores com 7 mil alunos, e uma faculdade de teologia que depende apenas da aprovação do MEC (Ministério da Educação) para sair do papel.

Idealizada em 1994 pelo empresário e surfista Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, a Bola de Neve nasceu como um ministério dentro da também neopentecostal (vertente da religião evangélica criada na metade da década de 70) Igreja Renascer em Cristo. Até 1999, atuou com o objetivo de levar o evangelho aos praticantes de esportes radicais promovendo encontros como apresentações de skate, capoeira e jiu-jítsu. Em 2000, Rinaldo fundou a sua própria denominação, a Bola de Neve Church. Church, igreja em inglês, porque era assim que os primeiros frequentadores chamavam o templo. O primeiro culto foi realizado em janeiro de 2000 em um prédio alugado na Rua Marco Aurélio, no bairro da Lapa, São Paulo. Antes disso, os encontros já aconteciam em um auditório improvisado na fábrica da marca de surfwear Hawaiian Dreams (HD) no centro da capital paulista. Na HD, onde era representante de vendas, Rinaldo e um grupo de surfistas – que posteriormente formaria o primeiro quadro de pastores da igreja – apoiavam a Bíblia em um longboard, assim surgiu a ideia de colocar a prancha como púlpito, uma das principais marcas da igreja atualmente.

Aos 41 anos, Rinaldo passou a ser o apóstolo Rina, pois hoje é o responsável por estabelecer os fundamentos da igreja e transmitir as “visões divinas” aos fiéis. Nascido em São Paulo em uma família de formação batista, trouxe muitos elementos dessa igreja à Bola de Neve como os ritmos dançantes e o ambiente familiar. Muitos deles se confundem com a própria personalidade de Rina, como o surf, por exemplo. O líder da Bola de Neve, que pega onda desde os 15 anos em picos como Camburi e Baleia, litoral norte de São Paulo, já tem no currículo viagens missionárias para lugares como Costa Rica, Peru, Hawaii, África do Sul e Califórnia. Nos anos 1980, frequentou baladas e casas de shows como o Olympia, por onde passaram roqueiros na capital paulista e hoje a casa da Bola de Neve em São Paulo. O gosto pelo surf e a música trouxeram uma abordagem diferente das organizações evangélicas tradicionais, o que ajudou a seduzir nomes como Dadá Figueiredo, Rodolfo Abrantes (ex-Raimundos), André Catalau (ex-Golpe de Estado), Zeider (Planta e Raiz) e mais recentemente Gabriel Medina e Miguel Pupo.

“Quando a igreja começou, ela era exclusivamente surfista (sic). Não porque a gente resolveu que esse seria o nosso target mas, como a maioria dos líderes praticava esporte, então nossos amigos e as pessoas que acabavam frequentando eram surfistas. Hoje ainda tem muita gente dessa área de esportes radicais”, conta Rinaldo.

Quando fundou a igreja, Rina tinha apenas 27 anos. Na época, uma viagem repleta de perrengues em Trindade, Paraty (RJ), e uma hepatite C agravada pelo abuso de maconha e cocaína no Carnaval fizeram o pastor beirar a morte e então decidir mudar de vida. Formado em marketing e pós-graduado em administração, estudava teologia quando abriu a igreja. Uniu esses aprendizados para fundar uma igreja que hoje tem templos faraônicos que comportam milhares de pessoas em lugares como São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Curitiba e Santos – onde existe até academia de musculação e piscina olímpica para uso dos fiéis.


Mas Rina afirma que não mede a importância da Bola de Neve pelo seu tamanho. “Nunca fiz essa conta de medir, qualificar e quantificar. Não posso cair no erro de olhar para os frequentadores da igreja como um resultado ou um troféu. Isso tem que ser uma consequência natural de um trabalho”, diz. Mas demonstra-se obstinado quando o assunto é levá-la aos cinco continentes, e não mede esforços para entrar no último deles. Um novo pastor está sendo treinado para abrir uma filial no Japão. Por igrejas vizinhas, a Bola de Neve é tida como modelo em administração religiosa, dispondo de um prédio de três andares e 40 funcionários para cuidar exclusivamente dos departamentos jurídico, contábil e financeiro.

Não se sabe ao certo o quanto a Bola de Neve arrecada. Porém, um ex-presbítero (cargo abaixo do pastor) que trabalhou seis anos na igreja e prefere não se identificar afirma que a unidade no Rio de Janeiro “recolhia” R$ 250 mil por mês e até R$ 1 milhão em São Paulo no ano de 2010.

O estudante Marcello Comuna, 33, que entrou na Bola de Neve em 2007, saiu dois anos depois por acreditar que a igreja funcionava como um negócio. “Eu me apaixonei pela ‘visão’ da Bola. A proposta de levar o evangelho de uma forma mais descolada, com uma linguagem contextualizada me parecia bem familiar com o estilo do próprio Cristo de divulgar sua mensagem. Lá tinha gente como eu, no estereótipo e na história de vida. A diferença é que Cristo era transparente. Na Bola de Neve as aparências enganam”, diz Comuna.

Se antes todos os pastores e as primeiras unidades ficavam no litoral, hoje a realidade é bem diferente. A organização já está presente em 21 capitais e centenas de cidades, grande parte delas no interior. Em uma entrevista concedida em 2011, Rina disse que sua igreja ficou “estigmatizada” com essa “história de surfistas” e calculou que “nem 5%” do seu público praticava o surf. Um ano antes, Dadá Figueiredo já havia deixado a Bola de Neve. Ícone do surf nacional nos anos 1980 e convertido ao evangelho nos 1990, o surfista frequentava a igreja desde os tempos da HD, mas hoje afirma que, no seu entender, a organização não acrescenta nada ao esporte.

Atualmente nos cultos realizados pela Bola de Neve, uma das únicas coisas que lembram o surf é a velha prancha como púlpito. É difícil achar um espaço nos encontros que acontecem nas quintas e nos domingos na sede da igreja em São Paulo. Chamado de “Casa de Deus”, e antigo reduto do rock, o Olympia hoje conta com capacidade para 4 mil pessoas, temakeria e lanchonetes que usam skates como prateleira. O público não mudou muito, exceto pelas Bíblias debaixo do braço. O próprio Rina é quem dá as boas-vindas aos fiéis. Sua esposa, pastora Denise, convertida depois de uma overdose de cocaína, é a encarregada da apresentação musical com batidas de rock e reggae que lembram alguns hits do passado. A diferença está nas letras, compostas pela própria Denise, que clamam a Deus com palavras fortes como “queimo de amor por ti” ou “te persigo violentamente”. A acústica do Olympia continua impecável como nos tempos de Ramones, Planet Hemp e Deep Purple. A apresentação é um verdadeiro espetáculo gospel. O show acaba e duas belas garotas gritam “Aleluia”.
Foto: Victor Moryana

Depois da música, é a hora dos recados da igreja: congresso para mulheres, campanha de doação de alimentos e uma peregrinação religiosa a Israel para quem estiver disposto a desembolsar US$ 4 mil. Rina volta ao palco, faz brincadeiras com o público, lê o Salmo e fala pausadamente sobre a importância do dízimo para as “atividades da igreja”. Logo três enormes filas se formam. Ao centro, os fiéis que pagam em dinheiro. Nas laterais, um pouco mais discretamente, há a opção de doar no cartão de crédito ou débito.

Para o teólogo Paulo Monteiro, professor de ciência da religião da Universidade Presbiteriana Mackenzie e autor de diversos livros sobre a corrupção nas igrejas, a ideia da doação material é tida como fundamental para se obterem as graças esperadas em igrejas evangélicas. “Uma das características da cultura brasileira é a transgressão. A voracidade de levar vantagem em tudo. Infelizmente, vários aspectos negativos da cultura brasileira foram assimilados pela igreja evangélica no Brasil. Muitos líderes de instituições religiosas com grande entrada de recursos se perdem ao longo da caminhada”, afirma.

O tema polêmico é tratado com clareza por Rinaldo. “Meu papel é ensinar o princípio. Como uma igreja sobrevive? Ela não vende produtos, não tem ajuda do governo, de empresas. As obras sociais da igreja sobrevivem de quem faz parte dela. Você não vê na igreja, entre uma música e outra, uma propaganda no telão dizendo beba Coca-Cola ou compre Volkswagen”, diz.

Apesar de Rina dizer que não vende produtos, a Bola de Neve tem uma série de mercadorias ligadas ao seu nome como Cd’s, DVD’s, livros, camisetas e adesivos. E se não recebe ajuda do governo, a igreja tampouco responde pelos seus lucros. Assim como sindicatos e partidos políticos, os templos religiosos possuem imunidade tributária garantida pela Constituição. Ao contrário de uma empresa tradicional, a igreja não paga impostos sobre os ganhos ligados à sua atividade. Na última década, não houve nada mais lucrativo no Brasil do que abrir uma igreja evangélica. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010, o número de pessoas que se declararam adeptas dessa religião aumentou 61,45% em dez anos. Hoje, um a cada cinco brasileiros é evangélico. Dados disponibilizados pela Receita Federal ao jornal Folha de S.Paulo revelaram que em 2011 as igrejas – entre católica, evangélica e outras – arrecadaram R$ 20,6 bilhões. A maior parte veio dos dízimos: R$ 14,2 bilhões.

Fotos: Victor Moryana / Hardcore -rep.

Na tentativa de ampliar a sua influência junto ao Estado, as igrejas evangélicas frequentemente também elegem seus próprios candidatos e assim concentram grande parte das decisões na câmara com a chamada bancada evangélica. Na Bola de Neve não foi diferente. Na última eleição municipal, apoiou Eduardo Tuma (PSDB), frequentador assíduo da Bola de Neve, para vereador em São Paulo. Os laços com o Partido da Social Democracia Brasileira começaram a ser estreitados antes, nas eleições de 2008, quando apoiou o candidato Geraldo Alckmin para prefeito. Chamado ao palco para receber uma chuva de aplausos, Alckmin chegou a falar que “nunca havia se sentido tão próximo de Deus como na Bola de Neve”, mas não passou nem do primeiro turno. Em 2012, a entidade apoiou o também tucano e candidato à prefeitura José Serra, que chegou a ser multado em R$ 2 mil pelo Tribunal Regional Eleitoral por fazer propaganda política dentro de um culto religioso da Bola de Neve.

A derrota sofrida pelos tucanos nas duas eleições municipais não foi o maior baque sofrido pela Bola de Neve em sua curta trajetória. Em 2010, o pastor Gilson Mastrorosa acabou desligado da igreja por manter relações sexuais com uma frequentadora, menor de idade, desde os seus 14 anos. Gilson, na época casado com Priscila Seixas, irmã do pastor Rina, era líder da igreja na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, e foi prontamente expulso depois de uma série de escândalos envolvendo o seu nome.

Outra crítica de pessoas que deixaram a Bola de Neve é a sua aproximação com o lado mais radical do neopentecostalismo. Durante congressos promovidos pela igreja com líderes de outras denominações, os membros mais próximos eram orientados a passar por exercícios de cura espiritual, parecidos com as sessões de descarrego. O skatista Thiago Marcone, que se formaria no curso de líderes de célula em São Paulo, relata que a cada seis meses era obrigado a repetir por horas frases como “eu peço perdão pelos meus pecados”, entre outras similares, com o objetivo de ser libertado de possessões demoníacas e malignas que poderiam estar agindo sobre ele.

Rina defende que essas sessões eram realizadas em congressos esporádicos, organizados pela Bola de Neve com a intenção de oferecer a chance de membros e pastores da igreja conhecerem outras linhas neopentecostais. “A gente procura se relacionar, fazer ponte com gente de todas as linhas possíveis para não ficar parecido com uma seita. Mas não são esses caras que determinam o que a gente vive”, esclarece.

Para uma turma de surfistas que ainda resiste na Bola de Neve, a igreja tem sido muito mais uma solução do que um problema. Ailton da Silva, por exemplo, superarou problemas como drogas e violência depois de passar a frequentar os cultos da igreja. Ex-segurança de eventos como o WQS do Guarujá, Ailton da Silva, 43, “aceitou Jesus” há cinco anos em Florianópolis. Antes, local do canal 1 de Santos, chegou a roubar e expulsava a socos quem ousasse rabear sua onda no Quebra-Mar. Diz ter aprendido a amar e a pedir perdão na igreja e afirma ter mudado de vida.

Bem mais conhecido, Gabriel Medina começou a frequentar recentemente a unidade da Bola de Neve em Boiçucanga, litoral norte de São Paulo. O top do WCT tem até aulas de ukulele – tradicional instrumento havaiano de cordas – com André Catalau, o ex-líder da banda de rock Golpe de Estado e hoje pastor da unidade que ainda tem o veterano Wagner Pupo, pai do top Miguel Pupo, como diácono. Longe dos templos luxuosos e ostensivos que caracterizam a Bola de Neve em lugares como São Paulo, Santos, Curitiba, Porto Alegre e Belo Horizonte, a filial de Boiçucanga ainda preserva as mesmas características do início da igreja que ajudaram a atrair surfistas e esportistas radicais. Um espaço sem pomposidades, localizado em uma comunidade extremamente carente e administrado por um líder que procura falar a linguagem dos surfistas.

André Catalau, 54, que já abriu show para o Deep Purple no Olympia em 1988, talvez seja o maior exemplo de superação dentro da Bola de Neve. Perdeu a irmã de overdose, o irmão de cirrose e por muito pouco também não morreu pelos excessos no álcool e na heroína. Conheceu a igreja através das clínicas de recuperação pelas quais passou. A convite de Rina, aceitou ser pastor e comandar a unidade de Boiçucanga e hoje adotou o discurso da igreja. “Quando comecei a ler o evangelho, queria mostrar o quanto aqueles caras eram fanáticos e bitolados. Queria provar que Jesus era um playboy. Fui encostar ele no corner e acabei nocauteado. A partir daí, parei de usar drogas, não me pergunte como”, conta o ex-vocalista, que possui a tatuagem “Jesus é o messias” no braço.

Assim como a maioria das igrejas evangélicas, a Bola de Neve é criticada – muitas vezes justificadamente – por ter um foco demasiado em crescimento financeiro, sem pagar impostos ou divulgar seus ganhos. Por outro lado, é inegável que a igreja trouxe benefícios a muitas pessoas que antes não identificavam-se com nenhum tipo de organização religiosa.

Mas até que ponto é justificável uma religião que não representa todos os surfistas, nem suas ideologias, associar sua imagem ao estilo de vida do surf?




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