Alexandre Versiani
Fotos: Victor Moryana
No século 18,
quando o navegador britânico James Cook desembarcou no Hawaii, o surf
fazia parte da religião local. Um sistema de leis ancestrais, chamado
Kapu, assegurava o direito sagrado de surfar com ensinamentos que iam
desde a construção de pranchas até orações para os deuses enviarem as
ondas. Dividida em classes reais e comuns, os tabus da sociedade
havaiana também valiam dentro da água. Havia recifes onde só os reis
tinham o direito de surfar e praias em que o esporte era liberado para
todos. Um século depois da chegada de Cook, com os dolorosos processos
de colonização, o surf acabou proibido no arquipélago por missionários
cristãos que consideravam a atividade imprópria. Assim o esporte ficou
banido da sociedade até o início do século 20, quando então foi salvo
pelo “messias” Duke Kahanamoku.
Quase um século
depois, a mentalidade das pessoas mudou e os próprios missionários se
contextualizaram. Há 40 anos, não eram mais padres e pastores que
recriminavam o esporte, mas a própria sociedade. Por muito tempo o
surfista foi tachado de rebelde, vagabundo e maconheiro. Com a
massificação do surf, todos esses rótulos ficaram no passado. Hoje ele
conta com uma popularidade nunca antes vista, e sua imagem é usada até
em comerciais de TV, novelas e revistas de celebridade. O surf entrou de
vez na roda do capitalismo, não por menos, atualmente é um dos esportes
mais praticados no Brasil e o mercado que o envolve injeta milhões de
reais todos os anos nas indústrias da moda e do entretenimento. Todos
querem um pedaço dessa imagem saudável, até mesmo a religião, que há
séculos expulsou o surf pela porta dos fundos.
De todas as
igrejas no Brasil, a que mais multiplicou o seu número de fiéis na
última década usa uma prancha como púlpito (espécie de altar evangélico
onde o pastor comanda o culto).
Fundada em
2000, a Bola de Neve Church fugiu do estereótipo do “crente evangélico”
com uma roupagem moderna que atraiu jovens de todos os tipos. Em dez
anos, saltou de 150 para 60 mil fiéis. Hoje são 220 templos espalhados
pelo Brasil e por países como Argentina, Peru, Chile, Uruguai, Paraguai,
EUA (Los Angeles, Miami e Hawaii), Portugal, Inglaterra, Rússia,
Austrália, Haiti, Bósnia e Moçambique. A avalanche não parou por aí. A
Bola de Neve ainda conta com programa de esportes radicais – veiculado
nas madrugadas de sábado para domingo na TV aberta (no mesmo horário do
global Altas Horas); a rádio mais acessada via internet no Brasil; peças
de teatro que atraem milhares de pessoas; cursos para a formação de
novos pastores com 7 mil alunos, e uma faculdade de teologia que depende
apenas da aprovação do MEC (Ministério da Educação) para sair do papel.
Idealizada em
1994 pelo empresário e surfista Rinaldo Luiz de Seixas Pereira, a Bola
de Neve nasceu como um ministério dentro da também neopentecostal
(vertente da religião evangélica criada na metade da década de 70)
Igreja Renascer em Cristo. Até 1999, atuou com o objetivo de levar o
evangelho aos praticantes de esportes radicais promovendo encontros como
apresentações de skate, capoeira e jiu-jítsu. Em 2000, Rinaldo fundou a
sua própria denominação, a Bola de Neve Church. Church, igreja em
inglês, porque era assim que os primeiros frequentadores chamavam o
templo. O primeiro culto foi realizado em janeiro de 2000 em um prédio
alugado na Rua Marco Aurélio, no bairro da Lapa, São Paulo. Antes disso,
os encontros já aconteciam em um auditório improvisado na fábrica da
marca de surfwear Hawaiian Dreams (HD) no centro da capital paulista. Na
HD, onde era representante de vendas, Rinaldo e um grupo de surfistas –
que posteriormente formaria o primeiro quadro de pastores da igreja –
apoiavam a Bíblia em um longboard, assim surgiu a ideia de colocar a
prancha como púlpito, uma das principais marcas da igreja atualmente.
Aos 41 anos,
Rinaldo passou a ser o apóstolo Rina, pois hoje é o responsável por
estabelecer os fundamentos da igreja e transmitir as “visões divinas”
aos fiéis. Nascido em São Paulo em uma família de formação batista,
trouxe muitos elementos dessa igreja à Bola de Neve como os ritmos
dançantes e o ambiente familiar. Muitos deles se confundem com a própria
personalidade de Rina, como o surf, por exemplo. O líder da Bola de
Neve, que pega onda desde os 15 anos em picos como Camburi e Baleia,
litoral norte de São Paulo, já tem no currículo viagens missionárias
para lugares como Costa Rica, Peru, Hawaii, África do Sul e Califórnia.
Nos anos 1980, frequentou baladas e casas de shows como o Olympia, por
onde passaram roqueiros na capital paulista e hoje a casa da Bola de
Neve em São Paulo. O gosto pelo surf e a música trouxeram uma abordagem
diferente das organizações evangélicas tradicionais, o que ajudou a
seduzir nomes como Dadá Figueiredo, Rodolfo Abrantes (ex-Raimundos),
André Catalau (ex-Golpe de Estado), Zeider (Planta e Raiz) e mais
recentemente Gabriel Medina e Miguel Pupo.
“Quando a
igreja começou, ela era exclusivamente surfista (sic). Não porque a
gente resolveu que esse seria o nosso target mas, como a maioria dos
líderes praticava esporte, então nossos amigos e as pessoas que acabavam
frequentando eram surfistas. Hoje ainda tem muita gente dessa área de
esportes radicais”, conta Rinaldo.
Quando fundou a
igreja, Rina tinha apenas 27 anos. Na época, uma viagem repleta de
perrengues em Trindade, Paraty (RJ), e uma hepatite C agravada pelo
abuso de maconha e cocaína no Carnaval fizeram o pastor beirar a morte e
então decidir mudar de vida. Formado em marketing e pós-graduado em
administração, estudava teologia quando abriu a igreja. Uniu esses
aprendizados para fundar uma igreja que hoje tem templos faraônicos que
comportam milhares de pessoas em lugares como São Paulo, Porto Alegre,
Belo Horizonte, Curitiba e Santos – onde existe até academia de
musculação e piscina olímpica para uso dos fiéis.
Mas Rina afirma
que não mede a importância da Bola de Neve pelo seu tamanho. “Nunca fiz
essa conta de medir, qualificar e quantificar. Não posso cair no erro
de olhar para os frequentadores da igreja como um resultado ou um
troféu. Isso tem que ser uma consequência natural de um trabalho”, diz.
Mas demonstra-se obstinado quando o assunto é levá-la aos cinco
continentes, e não mede esforços para entrar no último deles. Um novo
pastor está sendo treinado para abrir uma filial no Japão. Por igrejas
vizinhas, a Bola de Neve é tida como modelo em administração religiosa,
dispondo de um prédio de três andares e 40 funcionários para cuidar
exclusivamente dos departamentos jurídico, contábil e financeiro.
Não se sabe ao
certo o quanto a Bola de Neve arrecada. Porém, um ex-presbítero (cargo
abaixo do pastor) que trabalhou seis anos na igreja e prefere não se
identificar afirma que a unidade no Rio de Janeiro “recolhia” R$ 250 mil
por mês e até R$ 1 milhão em São Paulo no ano de 2010.
O estudante
Marcello Comuna, 33, que entrou na Bola de Neve em 2007, saiu dois anos
depois por acreditar que a igreja funcionava como um negócio. “Eu me
apaixonei pela ‘visão’ da Bola. A proposta de levar o evangelho de uma
forma mais descolada, com uma linguagem contextualizada me parecia bem
familiar com o estilo do próprio Cristo de divulgar sua mensagem. Lá
tinha gente como eu, no estereótipo e na história de vida. A diferença é
que Cristo era transparente. Na Bola de Neve as aparências enganam”,
diz Comuna.
Se antes todos
os pastores e as primeiras unidades ficavam no litoral, hoje a realidade
é bem diferente. A organização já está presente em 21 capitais e
centenas de cidades, grande parte delas no interior. Em uma entrevista
concedida em 2011, Rina disse que sua igreja ficou “estigmatizada” com
essa “história de surfistas” e calculou que “nem 5%” do seu público
praticava o surf. Um ano antes, Dadá Figueiredo já havia deixado a Bola
de Neve. Ícone do surf nacional nos anos 1980 e convertido ao evangelho
nos 1990, o surfista frequentava a igreja desde os tempos da HD, mas
hoje afirma que, no seu entender, a organização não acrescenta nada ao
esporte.
Atualmente nos
cultos realizados pela Bola de Neve, uma das únicas coisas que lembram o
surf é a velha prancha como púlpito. É difícil achar um espaço nos
encontros que acontecem nas quintas e nos domingos na sede da igreja em
São Paulo. Chamado de “Casa de Deus”, e antigo reduto do rock, o Olympia
hoje conta com capacidade para 4 mil pessoas, temakeria e lanchonetes
que usam skates como prateleira. O público não mudou muito, exceto pelas
Bíblias debaixo do braço. O próprio Rina é quem dá as boas-vindas aos
fiéis. Sua esposa, pastora Denise, convertida depois de uma overdose de
cocaína, é a encarregada da apresentação musical com batidas de rock e
reggae que lembram alguns hits do passado. A diferença está nas letras,
compostas pela própria Denise, que clamam a Deus com palavras fortes
como “queimo de amor por ti” ou “te persigo violentamente”. A acústica
do Olympia continua impecável como nos tempos de Ramones, Planet Hemp e
Deep Purple. A apresentação é um verdadeiro espetáculo gospel. O show
acaba e duas belas garotas gritam “Aleluia”.
Foto: Victor Moryana |
Depois da
música, é a hora dos recados da igreja: congresso para mulheres,
campanha de doação de alimentos e uma peregrinação religiosa a Israel
para quem estiver disposto a desembolsar US$ 4 mil. Rina volta ao palco,
faz brincadeiras com o público, lê o Salmo e fala pausadamente sobre a
importância do dízimo para as “atividades da igreja”. Logo três enormes
filas se formam. Ao centro, os fiéis que pagam em dinheiro. Nas
laterais, um pouco mais discretamente, há a opção de doar no cartão de
crédito ou débito.
Para o teólogo
Paulo Monteiro, professor de ciência da religião da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e autor de diversos livros sobre a corrupção nas
igrejas, a ideia da doação material é tida como fundamental para se
obterem as graças esperadas em igrejas evangélicas. “Uma das
características da cultura brasileira é a transgressão. A voracidade de
levar vantagem em tudo. Infelizmente, vários aspectos negativos da
cultura brasileira foram assimilados pela igreja evangélica no Brasil.
Muitos líderes de instituições religiosas com grande entrada de recursos
se perdem ao longo da caminhada”, afirma.
O tema polêmico
é tratado com clareza por Rinaldo. “Meu papel é ensinar o princípio.
Como uma igreja sobrevive? Ela não vende produtos, não tem ajuda do
governo, de empresas. As obras sociais da igreja sobrevivem de quem faz
parte dela. Você não vê na igreja, entre uma música e outra, uma
propaganda no telão dizendo beba Coca-Cola ou compre Volkswagen”, diz.
Apesar de Rina
dizer que não vende produtos, a Bola de Neve tem uma série de
mercadorias ligadas ao seu nome como Cd’s, DVD’s, livros, camisetas e
adesivos. E se não recebe ajuda do governo, a igreja tampouco responde
pelos seus lucros. Assim como sindicatos e partidos políticos, os
templos religiosos possuem imunidade tributária garantida pela
Constituição. Ao contrário de uma empresa tradicional, a igreja não paga
impostos sobre os ganhos ligados à sua atividade. Na última década, não
houve nada mais lucrativo no Brasil do que abrir uma igreja evangélica.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em
2010, o número de pessoas que se declararam adeptas dessa religião
aumentou 61,45% em dez anos. Hoje, um a cada cinco brasileiros é
evangélico. Dados disponibilizados pela Receita Federal ao jornal Folha
de S.Paulo revelaram que em 2011 as igrejas – entre católica, evangélica
e outras – arrecadaram R$ 20,6 bilhões. A maior parte veio dos dízimos:
R$ 14,2 bilhões.
Fotos: Victor Moryana / Hardcore -rep. |
Na tentativa de
ampliar a sua influência junto ao Estado, as igrejas evangélicas
frequentemente também elegem seus próprios candidatos e assim concentram
grande parte das decisões na câmara com a chamada bancada evangélica.
Na Bola de Neve não foi diferente. Na última eleição municipal, apoiou
Eduardo Tuma (PSDB), frequentador assíduo da Bola de Neve, para vereador
em São Paulo. Os laços com o Partido da Social Democracia Brasileira
começaram a ser estreitados antes, nas eleições de 2008, quando apoiou o
candidato Geraldo Alckmin para prefeito. Chamado ao palco para receber
uma chuva de aplausos, Alckmin chegou a falar que “nunca havia se
sentido tão próximo de Deus como na Bola de Neve”, mas não passou nem do
primeiro turno. Em 2012, a entidade apoiou o também tucano e candidato à
prefeitura José Serra, que chegou a ser multado em R$ 2 mil pelo
Tribunal Regional Eleitoral por fazer propaganda política dentro de um
culto religioso da Bola de Neve.
A derrota
sofrida pelos tucanos nas duas eleições municipais não foi o maior baque
sofrido pela Bola de Neve em sua curta trajetória. Em 2010, o pastor
Gilson Mastrorosa acabou desligado da igreja por manter relações sexuais
com uma frequentadora, menor de idade, desde os seus 14 anos. Gilson,
na época casado com Priscila Seixas, irmã do pastor Rina, era líder da
igreja na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, e foi prontamente expulso
depois de uma série de escândalos envolvendo o seu nome.
Outra crítica
de pessoas que deixaram a Bola de Neve é a sua aproximação com o lado
mais radical do neopentecostalismo. Durante congressos promovidos pela
igreja com líderes de outras denominações, os membros mais próximos eram
orientados a passar por exercícios de cura espiritual, parecidos com as
sessões de descarrego. O skatista Thiago Marcone, que se formaria no
curso de líderes de célula em São Paulo, relata que a cada seis meses
era obrigado a repetir por horas frases como “eu peço perdão pelos meus
pecados”, entre outras similares, com o objetivo de ser libertado de
possessões demoníacas e malignas que poderiam estar agindo sobre ele.
Rina defende
que essas sessões eram realizadas em congressos esporádicos, organizados
pela Bola de Neve com a intenção de oferecer a chance de membros e
pastores da igreja conhecerem outras linhas neopentecostais. “A gente
procura se relacionar, fazer ponte com gente de todas as linhas
possíveis para não ficar parecido com uma seita. Mas não são esses caras
que determinam o que a gente vive”, esclarece.
Para uma turma
de surfistas que ainda resiste na Bola de Neve, a igreja tem sido muito
mais uma solução do que um problema. Ailton da Silva, por exemplo,
superarou problemas como drogas e violência depois de passar a
frequentar os cultos da igreja. Ex-segurança de eventos como o WQS do
Guarujá, Ailton da Silva, 43, “aceitou Jesus” há cinco anos em
Florianópolis. Antes, local do canal 1 de Santos, chegou a roubar e
expulsava a socos quem ousasse rabear sua onda no Quebra-Mar. Diz ter
aprendido a amar e a pedir perdão na igreja e afirma ter mudado de vida.
Bem mais
conhecido, Gabriel Medina começou a frequentar recentemente a unidade da
Bola de Neve em Boiçucanga, litoral norte de São Paulo. O top do WCT
tem até aulas de ukulele – tradicional instrumento havaiano de cordas –
com André Catalau, o ex-líder da banda de rock Golpe de Estado e hoje
pastor da unidade que ainda tem o veterano Wagner Pupo, pai do top
Miguel Pupo, como diácono. Longe dos templos luxuosos e ostensivos que
caracterizam a Bola de Neve em lugares como São Paulo, Santos, Curitiba,
Porto Alegre e Belo Horizonte, a filial de Boiçucanga ainda preserva as
mesmas características do início da igreja que ajudaram a atrair
surfistas e esportistas radicais. Um espaço sem pomposidades, localizado
em uma comunidade extremamente carente e administrado por um líder que
procura falar a linguagem dos surfistas.
André Catalau,
54, que já abriu show para o Deep Purple no Olympia em 1988, talvez seja
o maior exemplo de superação dentro da Bola de Neve. Perdeu a irmã de
overdose, o irmão de cirrose e por muito pouco também não morreu pelos
excessos no álcool e na heroína. Conheceu a igreja através das clínicas
de recuperação pelas quais passou. A convite de Rina, aceitou ser pastor
e comandar a unidade de Boiçucanga e hoje adotou o discurso da igreja.
“Quando comecei a ler o evangelho, queria mostrar o quanto aqueles caras
eram fanáticos e bitolados. Queria provar que Jesus era um playboy. Fui
encostar ele no corner e acabei nocauteado. A partir daí, parei de usar
drogas, não me pergunte como”, conta o ex-vocalista, que possui a
tatuagem “Jesus é o messias” no braço.
Assim como a
maioria das igrejas evangélicas, a Bola de Neve é criticada – muitas
vezes justificadamente – por ter um foco demasiado em crescimento
financeiro, sem pagar impostos ou divulgar seus ganhos. Por outro lado, é
inegável que a igreja trouxe benefícios a muitas pessoas que antes não
identificavam-se com nenhum tipo de organização religiosa.
Mas até que
ponto é justificável uma religião que não representa todos os surfistas,
nem suas ideologias, associar sua imagem ao estilo de vida do surf?
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