No princípio foi disso que a chamaram: “baderna!” Foi assim que a
“imprensa vendida” descreveu o movimento. Mas enquanto ela subestimava o
povo um sopro de expectativas varreu as redes sociais, insuflando
chamas de esperança em alguns, causando arrepios de indignação e
desprezo entre outros. Conservadores só viam a baderna e as bandeiras do
PSOL, do PSTU e do PCO; a juventude à esquerda viu um futuro, um
sentido, um sinal de que estamos vivos e que coisas novas podem
acontecer.
“Mas veja bem” – foi a reação imediata de alguns – somos Cristãos.
Ordeiros. E “Deus não é deus de confusão” – não é assim que o apóstolo
Paulo escreveu em uma de suas cartas? Todos nós sabemos disso. Todos
nós, evangelicais ou reformados; só a esquerda e os “pentecostais” é que
não sabem. Crente não se mete em confusão!
Mentira. Quanto crente estava lá, nas redes sociais, nos blogs, no
twitter, chamando todo mundo para descer pra rua? Desceu foi muita
gente: abeuenses, Rede Fale, missões urbanas, a turma underground,
membros da minha igreja, o líder do departamento de educação cristã, até
a minha mulher queria descer, e não foi porque não podia mesmo. E tinha
pastor também: batista, presbiteriano, pentecostal, e quem não foi
ficou é orando pela manifestação, tentando entender o que se passava. O
filho do pastor Antônio Carlos, do Rio de Paz, acabou preso
injustamente. Torceram o nariz uns poucos, e mesmo assim porque acharam
que era coisa da esquerda (e não era coisa nenhuma; as esquerdas estão
como baratas tontas). E se um pastor quer apoiar, vai ter que se
explicar, não é? E a explicação é evidente:
Jesus também fez baderna
Foi especialmente entre os novos pastores urbanos como o Ariovaldo
Jr. que surgiu o argumento de que Jesus também fez baderna. Não é isso
afinal o que os evangelistas nos contaram, sobre Jesus entrando no
templo com um azorrague de cordas e descendo o cacete em cima dos
cambistas e vendilhões que haviam tomado o pátio dos gentios (Mt
21.12,13)? Se isso não é baderna, o que é então?
Tente imaginar a cena e não virá à sua mente outra coisa senão uma
bela confusão de moedas quicando, mesas virando, animais fugindo, gente
correndo e gritando palavrões numa santíssima baderna. Com um pouco mais
de imaginação, mentalize no lugar dos cambistas em debandada a corja de
pastores-e-apóstolos-da-prosperidade gritando “misericórdia” diante do
chicote de nosso bondoso Senhor, e você abrirá um sorriso de prazer.
E assim alguns tipos mais entusiasmados e mais anarquistas, entre
nossos queridos irmãos, deram de falar que Jesus vandalizou o templo!
Jesus vandalizou porque o sistema era injusto, e é legítimo vandalizar
para expressar nossa indignação contra o mal. Jesus tocou o terror.
Sim, Jesus vandalizou o templo!
Não, Jesus não fez nada disso. Não na minha Bíblia. Jesus não realizou um ato brutal, resultante da
inversão moral
descrita por Michael Polanyi – a canalização dos afetos morais
reprimidos, num contexto de desconstrução moral e ausência de valores
internalizados, para uma explosão de paixões revolucionárias. Jesus não
era um jovem revoltado e ressentido, um invertido moral louco para
destruir alguma coisa. Jesus realizou um ato profundamente teológico; e
enquanto chicoteava vendilhões e chutava mesas, gritava suas palavras de
ordem: “A casa do Senhor é de oração! Na sua mão virou buraco de
ladrão!”
Jesus sabia o que fazia, e porque o fazia. E ele sabia muito bem onde
estava o problema: o problema era o clero saduceu, a casta de
sacerdotes que dominava o culto no templo e que enriquecia com a
exploração da religião. Cegos de ganância, os senhores do templo
profanaram o espaço reservado aos gentios para lucrar um pouquinho mais.
Tomavam com isso o nome do Senhor em vão, profanando-o exatamente
diante dos gentios, traindo a vocação missionária de Israel. Eles
transformaram o templo em um covil de salteadores.
Então Jesus vandalizou o vandalismo
Veja bem: Jesus não vandalizou o templo;
Jesus purificou o templo,
que era o meio divino de culto. Jesus começou a consertar o que estava
quebrado, ainda que apenas numa antecipação simbólica, já que o templo
era temporário e provisório; ele começou a lavar o lugar daquela gente
vendida e daquele dinheiro sujo, botando os vândalos para correr.
Vândalos eram os sacerdotes, o partido saduceu e a maioria do
sinédrio, e não Jesus. O nosso Senhor vandalizou o vandalismo do templo,
e derramou sua ira junto com suas orações. Jesus pregava enquanto
chicoteava, e corria com os baderneiros. Pois a baderna dos homens é que
estava no poder.
A baderna está no poder
A baderna é de quem toma o nome de Deus em vão e usa a autoridade de
Deus contra o reino de Deus. A baderna é um partido institucionalizado
para a exploração, uma
cosa nostra, uma retórica, uma
verdadeira tradição de baderna. Jesus despojou e triunfou na cruz sobre
esse baderneiros cósmicos, tanto celestiais quanto terrenos, para trazer
a sua Shalom, a grande reconciliação. Mas essa reconciliação de Jesus
não é pacífica, não. Ela é sacrificial, mas não é pacífica. O Cordeiro é
o leão; os pés furados de pregos pisarão “o lagar do vinho do furor da
ira do Deus todo-poderoso”, e ele mesmo preparará “a grande ceia de
Deus” para as aves do céu – é o que diz o livro do Apocalipse. Esses
vândalos não perdem por esperar.
A baderna de Deus e a baderna dos homens
Mas enquanto isso o vandalismo institucional não demora a tomar suas
providências! O que fazer com esse desordeiro chamado Jesus? É claro que
para quem explora o templo de Deus – seja na religião, seja na política
– Jesus é a encarnação da baderna. Jesus é a desordem, o conflito, a
anomia. Jesus precisa ser preso, processado. Esses elementos marginais
colocam em risco a estabilidade do estado, fragilizam a ordem. Jesus é
claramente mais um desses desordeiros, começando outra sedição. O
Desembargador age rápido, pelo bem da
pax romana, e de uma canetada dá um jeito em Jesus!
Certamente isso não iria funcionar, nem com canetada, nem com
detenção, nem com crucificação, execução e enterro de Jesus. Porque ele
logo ressuscitaria dos mortos, e assim a baderna de Deus virava o mundo
romano do avesso. Pois para os homens, como o disse o apóstolo Paulo,
Deus parece louco. Mas a loucura de Deus é mais sábia do que a filosofia
dos homens, e a fraqueza de Deus é mais forte do que a força dos
homens, e a baderna de Deus é mais ordenada que a política dos homens. A
baderna de Deus quebrou o selo romano e é a certeza de que sua Shalom
será vitoriosa sobre a baderna dos homens.
Mas onde está essa baderna de Deus?
Pergunta crucial, pois nem toda baderna é a baderna de Deus. A baderna de Deus caminha
o caminho da cruz.
De vez em quando ela nos fará derrubar as mesas de alguns cambistas.
Mas os protestos de Jesus estão no final de uma longa jornada de cura,
de serviço, de oposição sólida e racional ao sistema político saduceu,
vendido e mancomunado com os romanos, à falsa religião dos sepulcros
caiados fariseus, e aos zelotes anarcopunks. Jesus não estava do lado de
ninguém, exceto de Deus e dos pecadores. Jesus não é revolucionário,
nem conservador, nem anarquista. Jesus é o salvador e o juiz das
ideologias dos homens, e não veio chamar justos, mas pecadores ao
arrependimento.
O problema é que de longe, Jesus se confunde na multidão. Visto lá do
alto, do trono do governador, da cadeira de Moisés, do pináculo do
templo, Jesus é mais um judeu revoltado e desajustado, Jesus é a
ilegalidade. Jesus emerge do caos, e precisa ser mandado de volta pra
lá. Jesus parece ser um representante da outra baderna humana, a baderna
da oposição subversiva. E por isso também os revolucionários ficam
confusos e acham que Jesus é da militância, que Jesus é
Queer,
que Jesus é punk, ou qualquer coisa politicamente correta, qualquer
coisa que alimente o seu senso de justiça própria, que compense as dores
de sua pobreza moral, que te faça “sonhar com um mundo melhor” enquanto
sua vida interior está um lixo.
Mas a baderna de Deus não é a turba insatisfeita, seja ela a turba
que vandaliza o próprio templo, e as próprias coisas que deveriam ser
reformadas e purificadas, seja a turba pacífica que “acordou” para
protestar mas nunca acordou dos ídolos modernos do estado, do consumo, e
da ampliação infinita dos direitos individuais. A baderna de Jesus
nasce no meio do povo, mas não é a baderna conservadora nem a baderna
revolucionária.
Vemprarua# Jesus!
Jesus vem pra rua sim, mas seu caminho não é o caminho fácil. Na
verdade ele já veio e já foi, e deixou um caminho aberto. Seu caminho é
longo e difícil, e nos colocará contra a turba. A turba aclamou Jesus na
entrada de Jerusalém, mas depois trocou Jesus por Barrabás.
Ah crentes ingênuos! Acreditam que o reino de Deus é a
turba! O reino está no meio de nós, e está na turba, e anda no meio da
turba, mas não é a turba, nunca foi e nunca será. O reino de Deus é o
juízo de todos, saduceus, fariseus, romanos, e até dos pobres
trabalhadores judeus de Jerusalém. A turba às vezes acerta,
especialmente quando está com fome e com sede, quando precisa de cura, e
quando precisa de um “pastor”. Mas logo tenta fazer de Jesus o seu rei,
não por que entende seus milagres, mas porque quer mais pão, como o
evangelista João escreveu. Ou mais direitos individuais, como João
escreveria hoje.
No entanto Jesus é um marginal diante do estado e também diante da
turba. E quando você, Cristão, erguer a sua voz para falar em nome da
justiça integral – não apenas contra a pobreza, mas contra o ideal
moderno-revolucionário, e não apenas contra a injustiça social, mas
também contra a idolatria estatal, e não apenas contra os caudilhos
evangélicos, mas também contra a massiva revolução da política sexual
hipermoderna, e quando assumir em público a sua identidade cristã
inteira e organizar sua vida inteira, incluindo sua carreira e seus
divertimentos em torno do evangelho, então você se descobrirá carregando
uma pesada cruz, sendo cuspido pelos antigos correligionários.
Mas ainda assim Jesus morreu em favor da turba. Jesus teve
misericórdia dela. Saiba, Cristão, que não está em seu poder abraçar a
turba, nem cuspir a turba. Esqueça o que a turba pensará de você; fuja
da turba quando ela quiser arrebatá-lo para fazer de você rei. Sirva a
turba mas não seja seduzido por ela.
A baderna boa, perfeita e agradável
“Mas eu quero fazer história já, e agora!” Eu sei, eu quero
também. Vá e faça história. Proteste. Viva o melhor da baderna atual.
Misture-se com a turba. Mas saiba que ela tem um pouco de Jerusalém e um
pouco de Babel, um pouco de cidade de Deus e um pouco da cidade dos
homens.
Ela é divina porque fala a verdade, que o sistema político atual não
representa o povo que pensa. E por isso o povo que pensa quer
contornar a política partidária.
Por isso estão arrancando as bandeiras do PSOL, do PSTU e vaiando a
juventude petista. Por isso os setores ideológicos estão desesperados
tentando gerenciar o movimento para capitalizar sobre o processo, mas
sem sucesso até agora (mas talvez tenham algum sucesso, e então podemos
ter uma pequena “revolução cultural”).
Talvez o povo deseje, sem saber dizê-lo com precisão,
uma ampla reforma política.
O sistema ficou velho, não funciona, não representa. Não se trata só do
passe livre, ou apenas do Fora Lacerda, ou dos custos da copa, ou do
padrão Fifa para todos, ou da indignação geral com a corrupção, mas de
um desejo de fazer política
diretamente, contornando os
atravessadores e apertando o estado pelo pescoço. A esquerda e a direita
estão mentindo sobre isso, e é preciso esfregar essa realidade na cara
dos infiltrados. Já me chamaram de esnobe por dizer que a esquerda e a
direita partidária não me representam. Pois digam isso agora ao povo.
Parodiando Paulo, se essa é a sua baderna, então é uma baderna
boa, perfeita e agradável.
Enfrente a rua, corra o risco de apanhar injustamente da polícia.
Enfrente a baderna humana dos vândalos que destroem o patrimônio
público, mas acima de tudo a baderna política institucionalizada que
destrói a república. Recuse a cooptação pela esquerda radical ou pelo
governo. Vandalize o vandalismo sem se tornar vândalo.
Mas ao mergulhar no movimento, se for levado pelo Senhor diante das
quimeras plurais
que “coordenam” as manifestações em cada cidade, e que ajuntam esses
mosaicos de insatisfações urbanas – reunindo quem sabe porque protesta e
quem não sabe porque protesta, quem é politizado e quem é apartidário,
quem é anarcopunk, quem ama e quem odeia o cristianismo, quem é de paz e
quem é vândalo, os reacionários e os invertidos morais revolucionários –
respire fundo e peça a Deus por sabedoria, pois você verá o choque da
baderna de Deus com a baderna dos homens.
Mas isso também é bom; Jesus orou para livrar você do mal, e não para
tirar você do mundo. A turba precisa de sua presença, do seu serviço e
de sua cruz. Não é tempo de iludir-se com um movimento tão desfocado e
carente de objetivos realizáveis (afinal, “é muito mais do que 20
centavos”). Menos ainda de ficar assistindo ou cuspindo palavras de
desprezo. Você, que é Cristão, você sabe melhor. Você não sonha com o
reino terreno das velhas e novas esquerdas, nem com memes de facebook,
nem acredita que
swarming é suficiente para transformar um
país; tampouco é um acomodado chafurdado no sistema de consumo e
esperando morrer para ir para o céu. Você não é utópico mas também não é
cínico, porque você tem
esperança, que é algo muito maior e
mais sólido. Então, se quiser ajudar ao invés de virar massa de manobra,
tome a sua cruz e plante a baderna de Deus no meio dessa baderna
humana.
Fonte: http://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2013/06/19/a-baderna-de-deus-e-a-baderna-dos-homens/