No inicio, pareceu-me a
pergunta mais absurda, mas logo me dei conta de que foi a pergunta que mudou a
minha vida.
Meu nome é Bartolomeu,
o filho de Timeu. Mas Timeu e minha mãe me engendraram cego. Nunca tinha visto
a luz, não sabia o que era uma cor, nunca tinha conhecido um rosto, não sabia o
que era um sorriso. Meu mundo era um mundo pobre, não só porque não tinha a
vista, como também outras riquezas estavam fora do meu alcance: uma família que
logo se desfez de mim porque minha própria cegueira a acusava, uma cidade que
me expulsava porque minha presença era a marca da debilidade. Assim era minha
vida, à margem do caminho, na antiga Jericó de Rajab, a cidade dos muros
tombados, a cidade reconstruida a preço de sangue, bendita e maldita Jericó.
Maldita pra mim, desde meu berço, ainda que nem berço tenha me dado.
Pobreza é a
falta de afeto, a falta de cuidado, a falta de misericórdia, e dessa pobreza me
queixa, mais do que a falta de vista. Fizeram-me pobre e mendigo, reduziram-me
a ser uma pedra na margem do caminho, o que sobra, o que não é. O testemunho
cego da ambição e do preconceito, o obrigado parasita da caridade alheia, o
molesto importuno no qual descarregar irritações e zombarias. De vez em quando,
a esmola injuriosa com a qual uma pessoa ou outra se julgava generosa e
cumpridora da lei me dava para comer pão das lágrimas, lágrimas dos olhos
negados.
Pensar que o cego era eu, mas eram eles que não me viam, não viam o ser humano
que eu sou, não sabiam de meus sonhos sem imagens, dos meus desejos sem
respostas, dos sofrimentos do desamor. E eu, ainda que cego, via: via a soberba
dos medíocres, o legalismo que expulsa, a dolorosa enfermidade dos que se creem
sãos porque veem, mas não enxergam seu próprio pecado, que é a pior
enfermidade. Cego e pobre, mas não tão cego e pobre como alguns videntes ricos.
A vida me lançou no lugar da pobreza, mas o que me faltou em bens sobrava-me em
experiências, nem sempre as melhores
Cego não significa surdo.
E escutava os transeuntes de mil caravanas que passavam ao largo. Enriquecia meu
pobre mundo com sons e as vozes, com os contos, à medida que chegavam até mim,
com os comentários de passagem. E entre essas histórias, começou a ressoar uma
vez ou outra um nome, um tal Jesus.
Galileus a caminho do
templo nomeavam-no vez ou outra. Aparecia em muitas historias: que por ordem
sua aconteceu maravilhosa pesca no lago, que alimentou uma multidão com apenas
uns poucos pães, que curou um homem que tinha a mão paralitica, uma mulher
encurvada, a outra com fluxo de sangue. Outros diziam que um paralitico tinha
caminhado em Jerusalém, próximo da piscina de Siloé, que os demônios rugiam
diante de sua voz e presença. Inclusive que uma menina tinha sido ressuscitada.
E também que havia restituído a vista aos cegos. Eu escutava também essas historias e como
queria acreditar nelas!
Havia também outras
vozes: as dos fariseus que o acusavam de não respeitar a Lei, de não guardar as
formas nem o sábado, de estar rodeados de pobres e rústicos, de publicanos e
prostitutas, quer dizer, de andar com pessoas como eu, feridas pela impureza.
Encolerizavam-se com sua maneira de ensinar, com a mensagem
ambígua de suas parábolas, sentiam-se ofendidos pela sua maneira de
contestá-los, por anunciar um reino de pobres e crianças, do qual eles seriam excluídos.
Ocasionalmente, quando
alguém com um pouco mais de simpatia se detinha perto de mim, aproveitava para
perguntar. Assim me inteirei de que, conforme acreditava, era descendente do
rei Davi, tinha sido batizada por João e, nesse momento, a voz de Deus tinha se
manifestado. Os rumores anunciavam que era um profeta dos antigos, no estilo
Jeremias, ou o mesmíssimo Elias que voltou à terra. Certa vez passou um
seguidor de João, o profeta que batizava e que tinha sido assassinado por
Herodes. Este, sim, tratou-me bem; inclusive deu-me de presente a capa que
tinha, porque dizia ser esse o ensinamento de João, e que Jesus era aquele que
João tinha anunciado. Disse-me que, quando estava na prisão, João o tinha
enviado junto com outros seguidores a se encontrar com Jesus e perguntar-lhe se
ele era o Messias ou tinham que esperar por outro, e que Jesus não lhes tinha
respondido diretamente, mas – e o homem se lembrava bem – que “ os cegos
recuperam a vista, os coxos andavam, os leprosos são purificados, os surdos
ouvem, os mortos, ressuscitam e aos pobres é anunciado o evangelho” . Essas coisas, eu mesmo ouvia nos comentários dos
viajantes e eram o meu próprio anseio, a mais profunda das minhas reclamações,
o mais sonhado dos meus sonhos. “ Ah se isso fosse verdade!”, dizia para mim. E
se fosse verdade, cheguei a conclusão que seria o Messias, e se for o Messias,
cedo ou tarde ele virá a Jerusalém e deverá passar por Jericó, e então terei
oportunidade de pedir-lhe, como os outros, que recupere a minha vista.
Efetivamente, o dia
chegou. Escutei os rumores. Preparei a minha alma. Era a oportunidade de minha
vida e não podia perdê-la. Assim, quando soube que estava próximo, comecei a
chamá-lo, a chamá-lo a partir daquilo que queria crer: “Jesus, filho de Davi!”.
Não faltou que quisesse que eu me calasse. No entanto, como eu iria calar?!
Teria que fazer minha voz ressoar mais alto do que as outras vozes. Se havia
algo certo em Jesus, naquilo que tinha ouvido dele, teria que ouvir-me, tinha
que ouvir o cego, o pobre, o rejeitado. Esse era o Jesus que minha cega
imaginação delineava.
E me ouviu e fez com me
aproximasse. Saltei com uma mola. Ai até voou a capa que o discípulo de João
tinha me dado de presente. Guiado pelas vozes, corri ao seu encontro, no ultimo
ato de minha cegueira. E então esta pergunta insólita: “O que queres que eu
faça por ti?”. Por um momento duvidei: “Por acaso, se é o Messias, não deveria
saber qual é a minha necessidade? Por acaso não está evidente que sou cego e o
que mais anseio é ver? Por que precisa perguntar o que é obvio?”. Contudo, não
duvidei na resposta: “Mestre, que eu veja”, eu lhe disse, acentuando o obvio. Vocês
já conhecem o resultado, porque agora vejo.
No entanto, voltei mais
de uma vez à insólita pergunta. E me dei conta de que nela estava contido todo o
segredo da liberdade humana. Jesus não pensou por mim, fez-me expressar meu
próprio desejo, explicitar meu anseio. Levou-me a fazer aquilo que sempre quis
fazer. Quando os outros mandaram que eu me calasse, ele me fez falar. Quando os
outros me mantinham à margem, ele me colocou no centro, fazendo com que
expressasse meu próprio sentir.
Quando os outros me
depreciaram, ele me mostrou seu apreço, querendo me escutar. Quando para os
outros eu era apenas uma coisa a mais à beira do caminho, para ele fui o ser
humano que pode manifestar o que deseja a partir de sua própria dignidade. Não pensou
por mim, não falou por mim, não decidiu por mim: deu lugar ao meu próprio desejo,
minha própria voz, minha própria decisão: o cego da margem do caminho pensa, fala, decide o que quer
diante do filho de Davi. Eu fui a autoridade, ele se colocou ao meu serviço: “Que
queres que eu fala por ti?”.
E realizou o meu
pedido, mas não fez sem mim, o fez com a minha fé. Salvou-me. Salvou-me da
indignidade, do opróbrio, da zombaria, da pobreza que desqualifica, do amor que
exclui. Essa pergunta banal foi a mais profunda de todas, a que mostrou que ele
verdadeiramente que ele é o Messias. Porque, antes de restituir-me a vista, já tinha
me devolvido a palavra, tinha me devolvido a dignidade, tinha me tornado humano
de novo.
Néstor Míguez
Um Jesus Popular Para
Uma Cristologia Narrativa. Editora Paulus 1ª Edição
Paginas 107 a 116.
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