Eventos evangelísticos e os recursos públicos
A Marcha para Jesus é um evento internacional que vem se expandindo desde sua idealização, em 1987, na cidade de Londres. No ano de 1993, o evento foi realizado pela primeira vez no Brasil. Atualmente, faz parte do calendário de diversas cidades brasileiras.
Em um primeiro momento, os cristãos poderiam imaginar que a Marcha para Jesus seria um culto, uma celebração ao Senhor, que dá nome ao evento. Parece ser evangelístico e, em alguns lugares, pode até ser. Alias, espero que seja, desde que não haja recursos públicos envolvidos. Todavia, para ser patrocinado pela prefeitura carioca, necessariamente, não pode ser um evento evangelístico, tendo em vista o preceito contido no artigo 19 da Constituição Federal, que fala da laicidade do Estado Brasileiro. Para ter este patrocínio, deve ser visto como um movimento político, uma ação afirmativa, ou qualquer outra coisa, menos um evento evangelístico. Basta observar que alguns políticos e pastores serão prestigiados e outros “esquecidos”, tudo com base na aliança política estabelecida.
Não é prática comum na política qualquer governante liberar recursos para movimentos que se oponham às suas ações. Sequer esperamos que isto ocorra, pois seria incoerência. Dessa forma, fica evidente que essa liberação de recursos revela uma aliança política que pode ser apoiada por parte dos evangélicos, mas reprovada por muitos outros: em si, já expõe divisão, mostrando as marcas dos interesses de grupos e a distância entre a prática do evangelismo e a do ativismo.
Por outro lado, há também o ativismo evangélico. É legítimo que ele ocorra, pois os evangélicos também são cidadãos. Todavia, esse ativismo não produz nenhum efeito para o Reino de Deus, pois a sociedade vê como uma atividade política, como o é. A maior demonstração disso é que os governos até liberam recursos públicos para a sua realização, como é o caso da Marcha para Jesus, na Cidade do Rio de Janeiro, que tem recursos da prefeitura da Cidade. O efeito disso é que o recebimento de recursos para um evento “evangélico” fragiliza a força e a credibilidade dos evangélicos para defender com a autonomia necessária seus princípios eventualmente colocados em risco pela prefeitura patrocinadora.
As cidades que apresentam maior número de evangélicos no Estado do Rio de Janeiro, bem como os estados mais evangelizados do Brasil, não alcançaram estes resultados com recursos públicos. A Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, é um grande exemplo. Região com vários municípios sofridos, porém, com maioria de evangélicos. Estes grupos de pessoas se tornaram exemplos, não por serem apoiados por recursos públicos, mas porque oram, evangelizam, visitam hospitais, presídios, e não se cansam de falar de Jesus nas praças, nas ruas, nos trens, aos familiares, colegas de trabalho e por onde andam. Esses tais, anônimos, mas eficientes evangelistas, certamente devem sofrer nas filas de hospitais, com médicos mal remunerados, sem remédios, e verem seus filhos, parentes e amigos estudando em escolas públicas com professores mal remunerados e sem estrutura.
Ademais, quem é a favor da liberação de recursos públicos para a Marcha Para Jesus, ou para qualquer outro evento evangélico, não poderá se opor à mesma liberação para a Parada Gay, ou para qualquer outro evento dessa ou de outra natureza. Outros grupos de ativistas também se sentirão, com razão, no direito de reivindicar o mesmo tratamento. Dessa forma, lá se vão os recursos públicos, escassos, para patrocinar eventos em que estão presentes pessoas bem vestidas, com planos de saúde, bons carros, programas de TV, rádio, igrejas bem estruturadas, etc.
“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. Tal frase foi proferida por Jesus (Mc 12.17), onde o Mestre definiu com clareza a autonomia e o respeito que deve haver entre a política (César) e a religião (Deus); pois quando ambos se imiscuem, os resultados são drásticos.
O resultado inexorável é o agravamento da situação de deterioração dos serviços públicos já precários. Muitos cristãos, dizimistas e ofertantes em suas igrejas, certamente iriam preferir os recursos públicos em hospitais, escolas, saneamento básico e em outras obras que melhorem a qualidade de vida de toda a sociedade local, religiosa ou não.
Isto porque, os grandes pregadores que evangelizaram áreas de elevado percentual de evangélicos, como a Baixada Fluminense, e outras regiões do país, não estarão nos trios elétricos.
Se o evento fosse evangelístico, ao invés de patrocínio com recursos públicos, seria patrocinado com ofertas, e não poderiam ficar distante dos trios elétricos os verdadeiros evangelistas que pregam diariamente pelas ruas, em hospitais, presídios, sem ter pelo menos um megafone. Por ser político, e não quero tirar a legitimidade do movimento, possui patrocínio público e até da Rede Globo, conhecida emissora que não tem em sua grade de programação qualquer programa evangelístico: aprecia a parceria com evangélicos, mas não mostra qualquer aderência com o Evangelho de Cristo.
As pessoas mais pobres que carecem da estrutura dos serviços públicos para sobreviver, não terão força política para montar grandes movimentos e terão seus interesses colocados em segundo plano, enquanto evangélicos, ou ativistas bem aquinhoados, bem vestidos, de classe média, com seus planos de saúde, com seus filhos em escolas particulares, no conforto dos seus carros, com residência em bairros nobres, desfilarão nas áreas mais famosas da cidade, com visibilidade na mídia, usando os recursos que faltarão em hospitais sem remédios e leitos, escolas sem professores e estrutura, e em cada atividade da administração pública. O que Jesus Cristo tem a ver com isso? Tudo isso poderia acontecer, mas com recursos próprios das igrejas que querem “evangelizar” ou mesmo se promover. Por fim, neste cenário, parece cumprir outra palavra de Jesus: “Porque ao que tem, ser-lhe-á dado; e, ao que não tem, até o que tem lhe será tirado”. Marcos 4:25. Para o povo, que não tem bons serviços públicos, até o que tem lhe será tirado. Para os fracos na fé que mergulham no ativismo puro, até o que têm, também lhes será tirado. Que o Senhor Jesus nos guarde de tamanho desastre.
Via: Gospel+
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