Eduardo Martins
É terça-feira de Carnaval no Rio de Janeiro e um caminhão de som para na esquina da Avenida Presidente Vargas com Rio Branco. No epicentro da mais tradicional folia de rua carioca, o bloco evangélico Cara de Leão, do Projeto Vida Nova, esquenta os tamborins. Do alto do veículo, o pastor Ezequiel Teixeira acompanha atentamente a movimentação lá embaixo. Contrariando o senso comum, ele encara o carnaval como uma oportunidade de evangelizar. O pastor se apega a passagem da Bíblia que diz "Ide e pregai o evangelho a toda criatura". Como a única coisa que o versículo não determina é o tempo para se fazer a pregação, Ezequiel aproveita para pregar até fora da hora.
Com o microfone em punho, ele acerta os últimos detalhes pondo 2500 fiéis em ordem. "Porta-Louvor, mais pra frente…", de cetim brilhante nas cores azul e branco, a porta-bandeira puxa o mestre-sala pela mão. Carregam o estandarte e um sorriso encabulado após o aviso que ecoou em 12 mil watts de som.
"Ala da Ilusão, liberte-se!", ao comando de Ezequiel cerca de cem jovens, todos de preto, espalham-se de um lado ao outro da avenida. Levam garrafas vazias de cerveja, canudos de papel imitando cigarro e placas com frases de efeito, tal como "O mundo jaz no maligno" e "O salário do pecado é a morte". Eles são os "iludidos" que dão nome à ala. Mais adiante estão os demônios, que por algum motivo tem a cabeça coberta por meia-calça. Na comissão de frente, um Lúcifer magro que lembra mais o coringa de um baralho.
Antes de iniciar o desfile, uma ligeira pausa para oração, depois, um minuto de silêncio. Com o relógio dourado à altura dos olhos, Ezequiel acompanha ansioso o movimento do ponteiro. Terminado o tempo, dá a largada. "Atenção, Bloco Cara de Leão! Vamos lá, povo de Deus! Chegoooou… a horaaa… GLORIFICA, CAVACO!"
A bateria ataca com força, fazendo vibrar as fachadas de vidro dos bancos, escritórios e lojas. Na falta de samba no pé, os crentes agitam os braços.
Do lado de fora do bloco, várias pessoas com as mãos dadas formam um cordão de isolamento, protegendo a evolução dos componentes pela avenida. Um dos elos da corrente é Renato Vieira, 28 anos, morador de Belfort Roxo. Ele participa do bloco há seis anos e diz que nunca foi muito fã de carnaval, mesmo antes de entrar para a igreja. "Como nunca bebi, sempre achei uma festa sem graça". Abruptamente Renato encerra o papo voltando para o batente porque cinco bate-bolas embriagados ameaçam invadir seu pedaço. Mas com os braços enlaçados a outros irmãos, ele afasta os desordeiros. "Toda atenção é pouca", diz.
Atrás da barraca de cachorro quente, o vendedor recebe uma oração de cabeça baixa. Mão estendida, a pastora Tânia Silva, de Itaipuaçu, faz um louvor. Seu trabalho é quebrar maldições. Por sua natureza pagã, provocante, estimuladora dos prazeres terrenos, para Tânia, o carnaval é obra do diabo. Confessa que já se divertiu muito em anos anteriores, no entanto, desde que se converteu, nunca mais caiu na folia.
Na calçada, o morador de rua usando uma bermuda presa apenas por um alfinete de fralda, traga o cigarro com indiferença. Bumbos, caixas, cuícas, pandeiros, repiques, passam ruidosamente a poucos metros de sua cama de papelão, e ainda assim, é como se um continente os separasse. Uma desavisada catadora de latas, usando sacos plásticos no lugar de sapatos, se anima com o batuque e tenta aderir ao bloco. Logo é barrada. Sem esmorecer ela abre um sorriso ébrio, depois volta a sua rotina de revirar lixeiras atrás de alumínio.
Um dos organizadores do bloco Cara de Leão é o pastor Alexandre Rodrigues, de 36 anos. Ele tem os cabelos grisalhos, bem aparados, óculos de aro fino e um olhar pacífico que lhe dá um ar confiável de gerente bancário. "Nossa missão é chegar no limite do profano para resgatar essas almas", defende. Nas contas do pastor, a pregação mostrando que a verdadeira felicidade não dura só quatro dias tem dado certo. "Cerca de sessenta por cento dos que estão aqui no desfile, se converteram por causa do bloco", diz ele.
Enfim, o Cara de Leão chega ao seu destino: a Cinelândia, onde nessa altura a diversão pega fogo e o "hino-enredo evangelístico" é recebido com estranheza. "VÂMO BOTAR CAMISINHA!", provoca Júnior, um mulato parrudo, com vestido de alcinha e bolsa de couro a tiracolo. A seu lado, Vilson, fantasiado de índio americano, gargalha desafiando a reprovação dos evangélicos.
Se o Carnaval é realmente a festa do profano, a praça é o que o pastor Alexandre e os outros pastores chamariam de fundo do inferno. A avenida é o território livre de bêbados, mulheres em trajes provocantes e foliões seculares. Pressentindo o enfrentamento, mais uma vez Ezequiel pede a palavra. Todos levantam as mãos numa prece contínua. Há um frenesi no ar. Talvez seja a mesma agonia de uma tropa que caiu numa emboscada. Ele segura o microfone, ajeita os óculos escuros no alto da testa e parece pronto para a guerra.
"Venha para frente, meu irmão. Saia do seu lugar. Não tenha vergonha de pedir uma prece. Você que está precisando, você que passa dificuldades. O Senhor quer te ajudar", diz Ezequiel. A resposta veio em bate-pronto: "Volta pra igreja, car@#%&!". A ofensa alcoólica rasga a oração como se fosse uma gilete. No entanto, o pastor não se abala e alguns foliões mais dóceis se rendem aos pedidos abaixando a cabeça.
Nas esquinas da praça, os protestos insistem. "Vai pro retiro!", esperneia um deles. Coagido pelas inúmeras provocações, Ezequiel apela para um minuto de silêncio em prol da paz no mundo. Milagrosamente o pedido surte efeito e a multidão emudece. É como se o pastor agarrasse a massa carnavalesca pelos chifres e dominasse a situação. Por um breve momento foi assim. Até que, nos segundos finais, um vendedor percebeu que aquela era a melhor hora para divulgar sua promoção: "Ó, três Skol, cinco real!".
Logo em seguida marchinhas são cantadas aqui e acolá, e o ambiente carnavalesco volta a prevalecer na Cinelândia. Mas Ezequiel já está satisfeito, a parafernália de som é desligada e o desfile encerrado. Entre os fiéis da Vida Nova há o sentimento de dever cumprido. Após percorrer centenas de metros num desfile atípico, resistindo a tentações de toda ordem e pregando a palavra do Senhor na adversidade, o único bloco evangélico do Rio de Janeiro se dissipa. O Carnaval já terminou para eles, que saem em grupos a perder-se de vista pelas ruas do centro, como um rebanho de ovelhas voltando para seu cercado.
Com o microfone em punho, ele acerta os últimos detalhes pondo 2500 fiéis em ordem. "Porta-Louvor, mais pra frente…", de cetim brilhante nas cores azul e branco, a porta-bandeira puxa o mestre-sala pela mão. Carregam o estandarte e um sorriso encabulado após o aviso que ecoou em 12 mil watts de som.
"Ala da Ilusão, liberte-se!", ao comando de Ezequiel cerca de cem jovens, todos de preto, espalham-se de um lado ao outro da avenida. Levam garrafas vazias de cerveja, canudos de papel imitando cigarro e placas com frases de efeito, tal como "O mundo jaz no maligno" e "O salário do pecado é a morte". Eles são os "iludidos" que dão nome à ala. Mais adiante estão os demônios, que por algum motivo tem a cabeça coberta por meia-calça. Na comissão de frente, um Lúcifer magro que lembra mais o coringa de um baralho.
Antes de iniciar o desfile, uma ligeira pausa para oração, depois, um minuto de silêncio. Com o relógio dourado à altura dos olhos, Ezequiel acompanha ansioso o movimento do ponteiro. Terminado o tempo, dá a largada. "Atenção, Bloco Cara de Leão! Vamos lá, povo de Deus! Chegoooou… a horaaa… GLORIFICA, CAVACO!"
A bateria ataca com força, fazendo vibrar as fachadas de vidro dos bancos, escritórios e lojas. Na falta de samba no pé, os crentes agitam os braços.
"O povo que andava em trevas
Viu uma grande luz
E sobre os que habitavam na região da morte
Resplandeceu a luz…"
Viu uma grande luz
E sobre os que habitavam na região da morte
Resplandeceu a luz…"
Do lado de fora do bloco, várias pessoas com as mãos dadas formam um cordão de isolamento, protegendo a evolução dos componentes pela avenida. Um dos elos da corrente é Renato Vieira, 28 anos, morador de Belfort Roxo. Ele participa do bloco há seis anos e diz que nunca foi muito fã de carnaval, mesmo antes de entrar para a igreja. "Como nunca bebi, sempre achei uma festa sem graça". Abruptamente Renato encerra o papo voltando para o batente porque cinco bate-bolas embriagados ameaçam invadir seu pedaço. Mas com os braços enlaçados a outros irmãos, ele afasta os desordeiros. "Toda atenção é pouca", diz.
Atrás da barraca de cachorro quente, o vendedor recebe uma oração de cabeça baixa. Mão estendida, a pastora Tânia Silva, de Itaipuaçu, faz um louvor. Seu trabalho é quebrar maldições. Por sua natureza pagã, provocante, estimuladora dos prazeres terrenos, para Tânia, o carnaval é obra do diabo. Confessa que já se divertiu muito em anos anteriores, no entanto, desde que se converteu, nunca mais caiu na folia.
Na calçada, o morador de rua usando uma bermuda presa apenas por um alfinete de fralda, traga o cigarro com indiferença. Bumbos, caixas, cuícas, pandeiros, repiques, passam ruidosamente a poucos metros de sua cama de papelão, e ainda assim, é como se um continente os separasse. Uma desavisada catadora de latas, usando sacos plásticos no lugar de sapatos, se anima com o batuque e tenta aderir ao bloco. Logo é barrada. Sem esmorecer ela abre um sorriso ébrio, depois volta a sua rotina de revirar lixeiras atrás de alumínio.
Um dos organizadores do bloco Cara de Leão é o pastor Alexandre Rodrigues, de 36 anos. Ele tem os cabelos grisalhos, bem aparados, óculos de aro fino e um olhar pacífico que lhe dá um ar confiável de gerente bancário. "Nossa missão é chegar no limite do profano para resgatar essas almas", defende. Nas contas do pastor, a pregação mostrando que a verdadeira felicidade não dura só quatro dias tem dado certo. "Cerca de sessenta por cento dos que estão aqui no desfile, se converteram por causa do bloco", diz ele.
Enfim, o Cara de Leão chega ao seu destino: a Cinelândia, onde nessa altura a diversão pega fogo e o "hino-enredo evangelístico" é recebido com estranheza. "VÂMO BOTAR CAMISINHA!", provoca Júnior, um mulato parrudo, com vestido de alcinha e bolsa de couro a tiracolo. A seu lado, Vilson, fantasiado de índio americano, gargalha desafiando a reprovação dos evangélicos.
Se o Carnaval é realmente a festa do profano, a praça é o que o pastor Alexandre e os outros pastores chamariam de fundo do inferno. A avenida é o território livre de bêbados, mulheres em trajes provocantes e foliões seculares. Pressentindo o enfrentamento, mais uma vez Ezequiel pede a palavra. Todos levantam as mãos numa prece contínua. Há um frenesi no ar. Talvez seja a mesma agonia de uma tropa que caiu numa emboscada. Ele segura o microfone, ajeita os óculos escuros no alto da testa e parece pronto para a guerra.
"Venha para frente, meu irmão. Saia do seu lugar. Não tenha vergonha de pedir uma prece. Você que está precisando, você que passa dificuldades. O Senhor quer te ajudar", diz Ezequiel. A resposta veio em bate-pronto: "Volta pra igreja, car@#%&!". A ofensa alcoólica rasga a oração como se fosse uma gilete. No entanto, o pastor não se abala e alguns foliões mais dóceis se rendem aos pedidos abaixando a cabeça.
Nas esquinas da praça, os protestos insistem. "Vai pro retiro!", esperneia um deles. Coagido pelas inúmeras provocações, Ezequiel apela para um minuto de silêncio em prol da paz no mundo. Milagrosamente o pedido surte efeito e a multidão emudece. É como se o pastor agarrasse a massa carnavalesca pelos chifres e dominasse a situação. Por um breve momento foi assim. Até que, nos segundos finais, um vendedor percebeu que aquela era a melhor hora para divulgar sua promoção: "Ó, três Skol, cinco real!".
Logo em seguida marchinhas são cantadas aqui e acolá, e o ambiente carnavalesco volta a prevalecer na Cinelândia. Mas Ezequiel já está satisfeito, a parafernália de som é desligada e o desfile encerrado. Entre os fiéis da Vida Nova há o sentimento de dever cumprido. Após percorrer centenas de metros num desfile atípico, resistindo a tentações de toda ordem e pregando a palavra do Senhor na adversidade, o único bloco evangélico do Rio de Janeiro se dissipa. O Carnaval já terminou para eles, que saem em grupos a perder-se de vista pelas ruas do centro, como um rebanho de ovelhas voltando para seu cercado.
O autor da matéria não é evangélico. Contudo, achei muito legal este testemunho "visto de fora". Eu, pessoalmente, simpatizo muito com a proposta da evangelização em plena folia, se a mesma for criativa, acolhedora (nunca provocadora) e edificante, sem contudo jamais se confundir com o ambiente à sua volta. O pessoal retratado na matéria, ao que parece, foi muito bem em seu esforço. Mesmo uma opinião "de fora" reconhece o bom trabalho. Parabens ao grupo!
E vc é contra ou a favor?
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É o Projeto Vida Nova, a Igreja que tem Cara de Leão.
ResponderExcluirSou diácono da igreja, participo todo ano desse evangelismo estratégico, verdadeiramente é um trabalho feito com muita seriedade (como deve ser as coisas de Deus).
No início desse trabalho a igreja foi tremendamente criticada, mas hoje a maioria entende que é um grande evangelismo feito na Av. Rio Branco que cruza o centro da cidade do Rio de Janeiro, uma das principais vias públicas da cidade, sendo palco de muitos acontecimentos importantes.
Nessa avenida são montadas arquibancadas para o público assistir os desfiles dos blocos de carnaval, e na terça-feira de carnaval é o dia em que o bloco Cara de Leão passar e declara para aquelas milhares de pessoas que estão ali, que Jesus não tem apenas 4 dias de alegria, mas uma vida inteira de alegria, desmascarando o carnaval.
Essa foi uma direção que Deus deu ao Pastor Ezequiel, em dias de carnaval não se retirar, mas ficar e declarar essas verdades.
Graça e Paz!