Está em curso uma série de reuniões para discutir a formação de uma "aliança de redes" evangélicas no Brasil. Inevitavelmente, o observador com um pouco de conhecimento histórico (ou mesmo um pouco mais velho) é tentado a esboçar um sorriso cético. Afinal, já vimos esse filme. Primeiro, houve a Confederação Evangélica Brasileira (CEB), criada nos anos 30 e que funcionou com bastante seriedade e representatividade até os anos 60. Depois de ter entrado em "coma" durante o regime militar, foi ressuscitada de forma altamente discutível durante a Constituinte de 1987-88, por um grupo de parlamentares evangélicos. Manchada por escândalos, foi finalmente sepultada. Em seguida, houve a Associação Evangélica Brasileira (AEVB), criada em 1991. A AEVB conheceu alguns momentos de destaque na sociedade brasileira ao longo dos anos 90, sobretudo no auge da projeção pública do seu primeiro presidente, Caio Fábio. Mas o necessário processo de enraizamento, embora muito recomendado, não foi feito. Em vez de se criar uma densidade institucional, preferiu-se depender do carisma pessoal do presidente e de sua capacidade de circulação ampla nos meios evangélicos, na sociedade civil e, até certo ponto, nos meios políticos. No final dos anos 90, os escândalos político e sexual do presidente novamente marcaram a efetiva dissolução da entidade mais representativa dos evangélicos. Desde então, a comunidade evangélica brasileira, imensa e crescente, carece totalmente de uma entidade unificadora.
Diante dessa história triste de repetidos fracassos, cabe perguntar se vale a pena tentar de novo. Qualquer tentativa não estaria fadada ao fracasso? Pior, não estaria propensa a acabar em mais escândalos desmerecedores da fé evangélica? E mais, será que o mundo evangélico não funciona a contento sem esse tipo de entidade? Afinal, para que desviar as atenções do trabalho essencial de evangelismo, discipulado e obras sociais, os quais seguem a todo vapor? Não seria melhor assumir de vez a desunião evangélica e esperar que, numa versão teológica da "mão invisível" da economia clássica, a dedicação exclusiva de cada segmento do mundo evangélico ao seu próprio bem-estar acabe redundando no bem-estar do conjunto?
Podemos responder a essas indagações de vários ângulos. Comecemos pensando no alcance da proposta de "unidade evangélica brasileira", dividindo-a em suas três dimensões: "Brasil, evangélicos e unidade".
Em primeiro lugar, o Brasil hoje está num momento peculiar. De um lado, continua sendo (no mau sentido) o "país do futuro" no qual as realizações ficam sempre aquém do potencial imenso. Por outro lado, o Brasil hoje é "o B do BRIC", ou seja, faz parte do grupo seleto de países emergentes (Brasil, Rússia, Índia e China) que transformarão a economia e geopolítica mundiais nas próximas décadas. Mais ainda, é a potência emergente cuja ascensão está sendo encarada com mais benevolência pela opinião pública mundial. Embora ainda haja muito que fazer, a visibilidade internacional do Brasil e a imagem do país no exterior melhoraram consideravelmente nos últimos anos.
Em segundo lugar, esse Brasil que começa a aparecer no cenário mundial tem a segunda maior comunidade de protestantes praticantes do mundo. Em números absolutos, há mais membros ativos de igrejas evangélicas no Brasil do que em qualquer outro país, exceto os Estados Unidos. E essa comunidade enorme não para de crescer. Ou seja, a igreja evangélica brasileira representa uma fatia muito importante da igreja evangélica mundial.
Em outras palavras, o Brasil representa cada vez mais no cenário mundial, e os evangélicos brasileiros representam cada vez mais na sociedade brasileira e no contexto evangélico mundial. Em vista disso, pensar numa entidade unificadora dos evangélicos brasileiros não é uma coisa de pouca importância. Há uma lacuna considerável no cenário social e político brasileiro, e no cenário evangélico mundial.
Contudo, em terceiro lugar, a unidade é muito difícil. Historicamente, a igreja cristã como um todo só esteve unida sob pressão política (por exemplo, depois da conversão do imperador romano Constantino). Além disso, o protestantismo em si tem ainda mais dificuldade de manter-se unido. Logo no século 16 dividiu-se, e de lá para cá as divisões só aumentaram. Há uma razão para isso. O protestantismo desteologiza a organização eclesiástica, levando inevitavelmente à pluralidade organizacional. Perde a capacidade de impedir a multiplicidade organizacional, apesar da retórica a favor da unidade.
A diferença entre protestantismo e catolicismo não é apenas uma questão de certas doutrinas. É também organizacional. O protestantismo é uma outra maneira de organizar o campo cristão. A legitimidade organizacional no protestantismo é plural, pois não resta base doutrinária capaz de localizar a legitimidade somente nesta ou naquela igreja. A legitimidade se espalha entre múltiplas organizações; aliás, o protestantismo contém não somente múltiplas organizações, mas também uma variedade de modelos organizacionais. Essa pluralidade tem efeitos positivos sobre a capacidade evangélica de organizar-se rapidamente em lugares novos e incentivar a iniciativa leiga. Mas também tem efeitos negativos.
É importante saber para que serve a "unidade". A unidade não é necessária para evangelizar (que acontece mais ainda por causa das divisões), nem para adorar, nem para fazer a ação social localizada. Porém, a unidade é necessária para três coisas. Em primeiro lugar, para a representação pública (vivemos num momento em que os governos federal, estaduais e municipais procuram envolver cada vez mais as entidades da sociedade civil nas políticas públicas). Em segundo lugar, para pronunciamentos éticos (faz muita falta uma entidade evangélica que possa, com humildade, esclarecer à opinião pública que lamentamos profundamente certas coisas que são feitas em nome dos evangélicos e que tais ações não condizem com o evangelho que professamos). E em terceiro lugar, para ações sociais de nível mais macro. Como exemplo de tais ações, podemos citar o país latino-americano que possui a entidade de unidade evangélica mais forte da região. O Conep, no Peru, existe ininterruptamente desde os anos 40 e agrega a maioria das organizações evangélicas peruanas. Como resultado disso, é praticamente o único país latino-americano no qual os evangélicos conseguiram criar uma entidade atuante e reconhecida pela sociedade na área de defesa dos direitos humanos (chamada Paz y Esperanza).
A lição a aprender é que certas coisas só podem ser feitas a um nível mais alto de articulação. Muitas coisas podem ser feitas "no varejo", por assim dizer, mas outras têm de ser feitas "no atacado". Diante disso, temos que nos perguntar: o que queremos conseguir como evangélicos no contexto brasileiro? Que marca queremos deixar na história do país?
Como já expliquei em artigos anteriores na revista Ultimato, o momento atual de crescimento acelerado da igreja evangélica não vai durar para sempre. Tudo indica que dentro de vinte ou trinta anos haverá uma maior estabilização numérica da presença evangélica no país. A minha previsão (que não é profecia, mas mera previsão sociologicamente informada!) é de que a comunidade evangélica se estabilize entre, digamos, 25% e 35% da população. Os católicos podem até se tornar minoria da população, mas a Igreja Católica continuará sendo de longe a organização religiosa mais forte do país.
Como será essa comunidade evangélica mais estabilizada? Será numericamente grande, mas ainda dividida em muitas denominações. Porém, a estabilização trará muitas mudanças, principalmente no tipo de líder exigido e nas demandas por um ensino mais aprofundado e por uma presença mais séria na sociedade. E a capacidade de realizar ações mais "macro" na sociedade dependerá da capacidade de criar algum tipo de "unidade".
Para isso, precisamos de doses iguais de idealismo teológico e realismo sociológico, mantendo os dois em tensão criativa. Que tipo de realismo sociológico? O realismo que sabe que o mundo evangélico sempre será dividido, mas que essas divisões podem ser atenuadas nos seus efeitos nocivos por um idealismo teológico e uma autoabnegação ministerial. O realismo que percebe que o evangelho precisa ser mostrado em certos níveis que somente podem ser influenciados "no atacado", por meio de ações conjuntas. O realismo que aceita que, por isso mesmo, a relação com o poder é inevitável, tanto porque a sociedade e o governo pedem o envolvimento evangélico (no bom sentido), como porque o vazio evangélico que resulta das divisões vai acabar sendo preenchido de algum jeito. O realismo que sabe, ao mesmo tempo, que essa relação inevitável com o poder é também sempre perigosa e acaba atraindo tanto os evangélicos triunfalistas como os evangélicos oportunistas (uns tão perigosos quanto os outros). O realismo que prevê que, uma vez estabelecida essa nova "aliança" evangélica, vai acabar exercendo funções de representação pública e ocupando espaços na mídia secular, quer queira quer não, e que aí os evangélicos oportunistas ficarão invejosos e tentarão entrar e ganhar o controle da entidade, ou, na impossibilidade disso, fundarão outra entidade concorrente (afinal, se os evangélicos são divididos aqui em baixo, por que não seriam divididos lá em cima?). Porém, o realismo que acha que, mesmo assim, com todos esses riscos, vale a pena tentar de novo criar uma entidade de unidade evangélica digna e séria. Para isso, a "identidade" é mais importante do que a "representatividade". A representatividade será sempre relativa, mas, se houver uma "identidade" sólida, um esforço de criação de "densidade" institucional e uma "seriedade" no trabalho realizado, o papel de "representação" seguirá.
• Paul Freston
Revista Ultimato
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