Por Hans Küng
Fonte: LE MONDE | 28.10.09 | 13h55 • Atualizado em 28.10.09 | 13h56
Um verdadeiro drama: depois de ter afrontado os judeus, os muçulmanos, os protestantes e os católicos reformistas, agora a Papa Bento XVI afronta os anglicanos. Com 77 milhões de membros, a comunidade cristã é o terceiro maior depois de a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa. O que aconteceu?
Depois de ter reintegrado discípulos da Fraternidade São Pio X, o Papa irá preencher as fileiras depauperadas da Igreja Católica Romana recrutando os anglicana favorável a Roma. Eles deveriam poder passar para a Igreja Católica Romana com mais facilidade. Os sacerdotes e bispos anglicanos manteriam o seu estatuto, mesmo que sejam casados. Hipertradicionalistas de todos os países, uni-vos - sob a cúpula de São Pedro! O pescador de homens vai lançar suas sua redes rumo à extrema-direita. O problema é que por lá as águas andam agitadas.
É uma mudança de curso dramática: é o fim da época do ecumenismo com base em um diálogo de igual para igual e numa busca autêntica de compreensão! Agora é a hora da caça debochada de sacerdotes. Nada é mais anti-ecumênico! E, na passagem, ainda se lhes oferece gratuitamente a dispensa da lei sobre o celibato clerical medieval para permitir um retorno ao seio da Igreja sob o primado do papa.
Claramente, o atual arcebispo de Cantuária, Rowan Williams, não estava preparado para esse ardil da diplomacia do Vaticano. Em seu diálogo com o Vaticano, ele, obviamente, não mediu as conseqüências desta pesca papal nas águas anglicanas. Se assim não fosse, teria ele assinado o comunicado amortecedor do Arcebispo católico de Westminster? Será que aqueles que são apanhadas nesta armadilha romana não percebem que eles não passarão de padres de segunda categoria dentro da Igreja Católica e que os católicos não vão sequer ser autorizados a assistir seus ofícios religiosos?
Este comunicado refere ainda descaradamente aos documentos de caráter verdadeiramente ecumênico da Anglican Roman Catholic International Commission (ARCIC), pacientemente elaborados durante penosas negociações entre o Secretariado romano para unidade dos cristãos e da conferência anglicana Lambeth; eles abordavam os problemas da Eucaristia (1971), do sacerdócio e da ordenação de padres (1973), sem esquecer a questão da autoridade da Igreja (1976-1981). Mas todos os especialistas sabem que estes três documentos em conjunto assinado pelas duas partes não se baseiam em uma vontade de caça, mas, pelo, contrário, de reconciliação.
Eles refletem um desejo genuíno de reconciliação e são a base do reconhecimento dos sacramentos anglicanos aos quais o Papa Leão XIII, com base em argumentos pouco convincentes, havia negado qualquer valor em 1896. Ora, da validade dos sacramentos depende a validade das celebrações anglicanas da eucaristia. Este seria o primeiro passo rumo a uma mútua hospitalidade, forma de intercomunhão e gradual aproximação entre católicos e anglicanos. Mas, na época, a Congregação para a Doutrina da Fé, em Roma, fez de tudo para levar esses documentos rapidamente nas gavetas do esquecimento do Vaticano. Chama-se a isso "engavetar".
"Há teologia demais, a la Küng ," dizia uma nota confidencial da Agência Católica de Notícias do Vaticano. Eu realmente havia dedicado a edição inglesa do meu livro A Igreja, ao arcebispo da Cantuária, na época, Michael Ramsey; Era o dia 11 de outubro, 1967, quinto aniversário do Concílio Vaticano II. Eu escrevi: "Na esperança humilde que se encontre nas páginas deste livro uma base teológica propícia a um acordo entre as igrejas de Roma e Cantuária."
Há nesse livro, também, uma solução para a questão lancinante do primado do papa, que separa, há séculos, não só essas duas igrejas, bem como Roma e as Igrejas Orientais, Roma e as Igrejas Reformadas. A "retomada da comunidade pastoral entre a Igreja Católica e a Igreja Anglicana seria possível" se"de um lado, se desse à Igreja da Inglaterra a garantia de poder conservar, plena e inteira, sua constituição eclesiástica autônoma, sob o primado de Cantuária " e se " do outro, a Igreja da Inglaterra reconhecesse o primado pastoral do papado como instância suprema de mediação e de conciliação entre as igrejas." Eu esperava assim, -escrevi na época- que "do Império Romano se pudesse, dessa forma, passar a um Commonwealth católico!"
Mas, este império, Bento XVI tem a intenção de restaurá-lo! Ele não faz nenhuma concessão ao anglicanismo, ao contrário, pretende manter e assegurar um centralismo romano duradoura da Idade Média - mesmo que isso torne impossível a unificação das igrejas cristãs sobre questões fundamentais. O primado do Papa - considerado por Paulo VI como a "grande rocha" no caminho da Unidade Igrejas – com toda a certeza não funciona como a "pedra angular da unidade".
O antigo convite de "ir a Roma" torna a forçar a barra, principalmente, pela passagem de sacerdotes para o outro campo e no maio número possível. Fala-se de meio milhão de anglicanos e de vinte a trinta bispos. E o que acontecerá com os 76 milhões restantes? Tal estratégia já mostrou seus limites séculos atrás, e, na melhor das hipóteses, vai levar à criação de um mini-Igreja Anglicana "unida" a Roma sob a forma de dioceses pessoais (e não territoriais). Mas quais são as conseqüências dessa estratégia hoje?
1. Continuação do enfraquecimento da Igreja Anglicana: no Vaticano, os anti-ecumênicos se alegram, com a chegada dos conservadores, enquanto a Igreja Anglicana festeja a saída destes empecilhos que voltam em revoada ao fim de feira dos católicos. Mas, para a Igreja Anglicana, essa divisão é um elemento corrosivo suplementar. Ela já está sofrendo as conseqüências, nos Estados Unidos, da nomeação inutilmente imposta de um padre abertamente homossexual, nomeação essa que mete em perigo a integridade da diocese e da unidade de toda a comunidade. A isto junta-se a atitude ambígua desta Igreja perante os casais homossexuais: muitos anglicanos estariam dispostos a aceitar uma união civil com direitos (herança, por exemplo) e, possivelmente, até mesmo um sacramento religioso, mas não " casamento "(reservado por milênios para a união entre um homem e uma mulher) com direito à adoção com conseqüências imprevisíveis para as crianças.
2. Preocupação generalizada dos fieis anglicanos: a partida de sacerdotes anglicanos e a nova ordenação do rito romano coloca, para muitos anglicanos (inclusive o clero), a questão de saber se os padres anglicanos, a final de contas, foram ou não ordenados validamente. Será que não seria preciso que os fieis passassem também paro o lado católico com seus padres? O que vai acontecer em seguida, com os prédios da Igreja, os salários dos padres, etc. ?
3. Descontentamento do clero católico e do povo: a insatisfação suscitada com a persistente recusa de reforma, afetou também os católicos mais fieis. Após o Concílio Vaticano II, numerosas conferências episcopais, muitos sacerdotes e uma multidão de fieis, pediu o fim da proibição de casamento para os padres, que remonta à Idade Média e que já fez desertar quase metade das padres. Mas Ratzinger sempre lhes opôs uma recusa tão obstinado como imprudente. Será que, agora, vai ser preciso que os padres católicos tolerem a seu lado, a presença de padres convertidos casados? Seria preciso, se algum quer casar, se tornar antes anglicano e depois voltar para suas convicções?
4. Assim como no cisma entre Oriente e o Ocidente (século XI), como no tempo da Reforma (século XVI) e como no Concílio Vaticano I (século XIX), o desejo de poder de Roma divide a cristandade e prejudica a própria Igreja. Uma verdadeira tragédia.
Tradução do francês: João Tavares
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