A inimizade entre duas tribos e a força de antigas crenças trazem morte e angústia aos Nwangas. Em meio à opressão humana, mãe e filha constroem uma trajetória rumo à sonhada liberdade. Esta interessante história, escrita por Ronaldo Lidório - antropólogo e missionário – é a sinopse do livro 'África, a alegria vem pela Manhã', lançado recentemente.
A obra leva-nos a conhecer um pouco mais a respeito do multicultural continente africano, seus mistérios, sua beleza, seus costumes e crenças. Na construção da narrativa, Lidório utiliza elementos da vivência de três mulheres que, em seus diferentes contextos, enfrentaram grandes batalhas e sobreviveram. Traz um profundo encorajamento para perseverarmos um pouco mais, não importando as lutas da vida, para amarmos aquele que está ao nosso lado e exercer o perdão que liberta.
Nesta entrevista o reverendo da Igreja Presbiteriana fala sobre o que é missões e analisa os rumos da Igreja Brasileira.
O que é Missões?
É um movimento salvífico e kerygmático que parte do coração e da volição de Deus, revelado nas Escrituras, onde o Evangelho é prometido, no Messias, a todas as pessoas em todas as etnias espalhadas pelo mundo. Portanto é um movimento de Deus. Eu poderia dizer que tem como principais elementos:
1. O sacrifício do Cordeiro o qual "com o seu sangue comprou, para Deus, homens que procedem de toda língua, tribo, povo e nação";
2. O 'dunamis' do Espírito derramado sobre a Igreja em Atos que a capacita a comunicar esta Palavra revelada;
3. O amor do Pai que a cada dia tenta nos comunicar que "uma alma vale mais que o mundo inteiro";
4. E a ação da Igreja como comunidade propagadora desta mensagem que salva a todo aquele que crê.
O cerne da obra missionária, portanto, não é a visão do mundo mas sim a submissão a Deus.
Como o senhor vê a diferença entre o que se fala e o que se faz sobre missões na Igreja de hoje?
A Igreja, de forma geral, tem entendido bem os princípios bíblicos que motivam a visão missionária, e isto é extremamente positivo. Hoje já se entende que é preciso falar de Cristo tanto perto quanto longe, que a prioridade da Igreja deve ser a prioridade de Deus e que a Igreja é uma comunidade funcional, precisa fazer diferença na terra. Entretanto há ainda um caminho a andar. Ainda vemos a força missionária brasileira no mundo indígena continuar numericamente a mesma desde uma década atrás; percebemos que o processo de cooperação entre denominações e Agências missionárias em áreas com fortes barreiras ao evangelho ainda é muito lento e há uma gritante necessidade de entendermos que o caráter é mais importante que a habilidade pois a grande parte dos problemas missionários que temos, dentro ou fora do campo, surgem a partir de uma vida distante de Deus e não da falta de conhecimento acadêmico.
A igreja brasileira é de fato um celeiro missionário, como temos tantas vezes ouvido? Se é, quais as implicações disso?
Não creio que sejamos ainda um celeiro missionário para o mundo. A visão e a seriedade missionária crescem em nossas igrejas e louvamos a Deus por isto, mas há barreiras vivas para que nos tornemos uma nação tipicamente missionária. Para citar apenas três:
- Vivemos no Brasil uma tendência eclesiástica de enfatizar mais o ministério humano do que a glória de Deus o que obscurece a nossa real motivação para fazermos missões;
- Temos também vivido um Cristianismo mais contemplativo do que prático mas estamos experimentando boas mudanças ao meu ver;
- Mas principalmente sinto falta que os pastores locais preguem mais sobre a obra missionária em suas próprias igrejas. Vejo a importância do testemunho missionário, das conferências anuais com preletores especiais, dos slides e filmes e também do momento informativo e ofertas entretanto a Igreja Brasileira não será um celeiro missionário para o mundo até que os pastores locais passem a expor a Palavra ao próprio rebanho de que esta é a visão de Deus.
Qual o fator determinante para a Igreja realizar missões? O que impede essa ação?
Conheço uma pequena igreja entre a tribo Bassari no Togo, África, que decidiu viver como Jesus. Passaram a dar ênfase à oração, santidade de vida e priorizar o que é importante para Deus, especialmente a comunhão e louvor. Em pouco tempo sentiram-se atraídos por uma outra grande aldeia Bassari onde não havia nenhum convertido. Em um dos cultos dois homens foram despertados pelo Senhor e decidiram se mudar para lá. A igreja comprometeu-se com eles. Após três anos aquela aldeia estava toda rendida ao pés de Jesus. Até onde sei é algo único no oeste africano. Aquela comunidade, mesmo sem ter o termo "missões" em sua própria língua, era uma comunidade missionária. Ou seja, o fator determinante para se fazer missões é o mesmo para se cumprir qualquer outro mandamento bíblico: estar submisso a Deus e andar na visão do Senhor.
O senhor fala no livro "Igreja: uma comunidade missionária" em "Viver de acordo com o que cremos". Será que por causa da influência da teologia da prosperidade temos visto Deus como aquele que deve nos atender e nos servir e deixamos de viver a cruz de Cristo, ou melhor, morrer por Ele?
Creio que a Bíblia revela-nos grandes verdades mas é preciso equilibrá-las na cruz de Cristo. A prosperidade é um assunto bíblico como também o é o sofrimento. Quando os extremos distorcem a verdade isto torna a Igreja menos capaz pois dependemos da Palavra de Deus para viver. Quando afirmo que devemos "viver de acordo com o que cremos" tento enfatizar que o nosso problema, muitas vezes, não é a ausência do credo bíblico. Na verdade cremos em muitas coisas como a salvação em Cristo, o amor de Deus por todos os homens, o poder do Espírito sobre a Igreja, a necessidade de comunicar o evangelho e a comunhão entre os santos. O grande dilema que enfrentamos é como traduzir esta nossa fé para a vida diária e é justamente aí que nascem os paradoxos. Mas este é um caminho pelo qual percorreremos durante toda a nossa vida e por isto dependemos da graça, misericórdia e tolerância de Deus sobre nós. É necessário ir em frente.
O senhor disse "Não creio em um despertamento missionário sem quebrantamento espiritual". O que isso significa?
Fazer missões é cumprir um mandamento bíblico e sem dúvida não conseguiremos fazê-lo sem submissão ao Senhor. Os grandes movimentos missionários na história como a Igreja Nestoriana no oriente e a Moraviana no ocidente passaram por um quebrantamento espiritual que os levou a desejar viver como Jesus antes de serem impactados por uma profunda compaixão pelo mundo perdido. E quando chegou o momento aqueles homens e mulheres estavam dispostos a viver e morrer por Ele. Como afirmou o conde Zinzendorf: "Só tenho uma paixão: Ele". Não podemos divorciar nosso apelo missionário de uma pregação por santidade de vida. Creio que teólogos e missiólogos nos indicarão o caminho mas apenas uma Igreja cheia do Espírito Santo alcançará o mundo sem Cristo.
Como é a batalha espiritual em missões?
Efésios 2 ensina-nos que, na nossa caminhada cristã, lutamos como o mundo, a nossa própria carne e o diabo, que recebe ali o título de "príncipe da potestade do ar". A batalha contra as forças espirituais portanto é apenas parte da guerra, pois nem tudo é demoníaco. Assim sendo precisamos, antes de mais nada, de muito discernimento espiritual na obra missionária pois é preciso tratar o ataque espiritual como ataque espiritual, o pecado como o pecado e o mundo como mundo.
Tendo isto em mente podemos ver que, como a expansão da Igreja de Cristo na terra é visão de Deus, o diabo fará tudo aquilo que puder para tentar enfraquecer esta expansão, ou distorcê-la, e para que isto aconteça é necessário que ele trabalhe especialmente na fonte da agência que propaga a mensagem: a Igreja. Temos a tendência de crer que as manifestações sobrenaturais diabólicas formam a linha de frente no seu ataque à Igreja. Mas há o ataque sutil que destrói a auto-estima, que corrompe o relacionamento entre o casal, fomenta a mentira, incita ao suborno e enche a mente do que não edifica. Ataques como este podem devastar uma família na frente missionária sem grandes alardes. Na vida cristã é preciso renovar a cada dia nosso compromisso com Deus.
Até que ponto as estratégias de crescimento e alcance podem determinar os resultados do trabalho missionário?
As estratégias de alcance fazem parte da nossa responsabilidade cristã e não asseguram um bom resultado pois tanto na obra missionária como na vida cristã estamos debaixo da soberania de Deus. Podemos plantar e regar mas o crescimento vem do Senhor. E o Senhor usa tanto a eloquência de Paulo como o coração apaixonado de Pedro. É preciso também lembrar que não devemos definir missões em termos de resultados mas sim de fidelidade. Ou seja, somos tomados positivamente pelo desejo inerente de ver a obra avançar, a igreja crescer e pessoas se renderem ao Senhor Jesus. Contudo somos chamados primariamente para uma vida bíblica, que cumpre a vontade de Deus e vive para a Sua glória. E muitos viveram assim sem colher os frutos do seu trabalho.
O senhor acha que a era da Comunicação de Massa influencia nossa maneira de ver as pessoas e suas necessidades a ponto de nos determos mais em números e estruturas?
A comunicação de massa foi necessária no passado e é ainda mais necessária em nossos dias pelos grandes números populacionais com os quais lidamos. Entretanto é certo que não podemos cair no processo de massificação descrito por Renuè onde "cada homem se tornará um número e um povo será uma nota de rodapé". Há no mundo hoje 279 "mega-línguas", ou seja, línguas faladas por mais de 1 milhão de pessoas. O filme Jesus já foi visto por mais de 2 bilhões de pessoas traduzido para mais de 50 idiomas. Das 6528 línguas vivas no mundo mais de 4000 ainda permanecem sem a Palavra traduzida.
Como a globalização afeta a igreja e sua tarefa de fazer missões?
Eu diria que a globalização influencia a obra missionária em alguns aspectos:
1. Temos maior acesso à informação e isto coopera muito com o mapeamento missionário. Assim já sabemos quem são os não alcançados e onde eles vivem. A próxima tarefa é definir como alcançá-los.
2. O mundo ganhou maior mobilidade social. Desta forma podemos encontrar centros urbanos como Dakar com mais de 250 etnias representadas. É o que podemos chamar de 'caldeirão étnico'. A atual tendência populacional será a concentração étnica em grandes centros urbanos e isto mudará nossa forma de alcançá-los dentro de 20 anos.
3. Os missionários passaram a se locomover entre ministérios e campos com mais rapidez. Em Gana, onde trabalhamos, os missionários até 30 anos atrás traziam seus caixões quando chegavam ao país pois planejavam viver e morrer ali. Hoje o missionário tende a trabalhar mais em equipes e passar, em média, não mais de 4 anos em cada campo.
4. Mesmo em grupos tradicionalmente isolados há crescente interesse pelo mundo exterior. Assim o ensino do inglês como língua franca mundial, por exemplo, pode abrir portas para o evangelho em países islâmicos.
5. A Internet levantou uma grande expectativa no processo de evangelização em países ainda fechados. Entretanto, pela própria estrutura aberta e vasta, tem sido difícil usá-la como um instrumento preciso e ainda há muitas limitações.
6. Mas há também influências negativas como a massificação, o culto à personalidade, a atração por quaisquer métodos (bíblicos ou não) que atraiam grande público e o início de uma era onde o pastoreio do crente perde o apelo.
Por: Redação Creio
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